Na última sexta-feira São Paulo viveu mais um dia de caos no trânsito. Pela manhã, um acidente na Ponte Cidade Jardim travou a Marginal Pinheiros. À tarde uma manifestação bloqueou a Marginal Tietê e, à noite, uma outra manifestação por pouco não paralisou o trânsito da Avenida Paulista. Muita gente passou o dia dentro de um automóvel. Até aí não tem novidade.
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Já tinha os ingressos para ver a peça Estrada do Sul, no sábado, e ler as notícias sobre o trânsito do dia anterior foi uma espécie de preparação. É que a peça se passa num carro, preso no trânsito. Você chega no local, a Vila Maria Zélia, na Zona Leste, sede do Grupo XIX de Teatro e, com o ingresso do espetáculo, recebe um número que indica o carro em que deve entrar. A experiência depende do automóvel, se ele estiver no começo do engarrafamento é uma coisa, no final ou no meio é outra.
São vários personagem/condutores: o mecânico, a poetisa, a cadeirante, a freira, um casal a caminho da festa de casamento, uma perua, o escritor, o militar, a atriz, uma mãe alcoólatra com o filho e outros.
Fiquei no carro 18, o último da fila, o da poetisa. Ao entrar você já se depara com um pequeno universo. Aquele espaço era dominado por livros, rascunhos e muita bagunça. Foi curioso ter ido parar justamente naquele que tinha um exemplar das Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, livro que pesquisei por tanto tempo. A obra estava bem ali ao lado do banco do carona, dando as boas-vindas.
A condutora chega, pede desculpas pela bagunça e acelera seguindo os demais carros. No caminho oferece chicletes, bala e pergunta se alguém se incomoda se ela fumar. Mais à frente, um sujeito na beira da pista pede que se reduza a velocidade. Sinal de que a peça vai começar. E logo os carros param e ficamos sabendo de um grande acidente. Alguns saem, e você ainda não sabe muito bem quem é ator e quem é espectador. Dúvida que não perdura muito tempo, pois logo se revelam os conflitos.
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Ficamos sabendo que não há previsão de liberação da pista e que teremos de passar a noite ali. As pessoas cobrem os automóveis com lonas e lençóis, como se andassem preparadas para dormir em congestionamentos. As luzes se apagam, e a poetisa conta sobre seu processo de escritora. Num outro momento declama um de seus poemas. E fico imaginando o que deve estar acontecendo dentro dos outros carros.
As luzes se acendem e chega o dia. Um grupo começa a recolher mantimentos, cria-se uma espécie de sociedade em que todos dividem tudo. À nossa frente, a mãe alcoólatra reclama que sua garrafa de vodca não deve ser dividida com os outros. Muitos outros conflitos se desenrolam e formam o espetáculo teatral até que o trânsito é liberado novamente.
A provocação da peça me fez lembrar de momentos vividos na BR-101 e na SC-401, as “estradas do Sul” da minha vida. O título, aliás, remete ao conto A Autoestrada do Sul, do escritor Julio Cortázar, que inspira a peça teatral. A discussão proposta pela encenação faz ainda mais sentido num ano em que o transporte público e o trânsito das grandes cidades ganhou força na pauta e, esperamos, na agenda política.
No conto de Cortázar, quando termina o congestionamento algumas pessoas já estão habituadas ao novo modo de vida em grupo e têm dificuldades para entender o motivo da pressa para voltar aos carros e sair dali: “E se corria a 80 quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente”.
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