O pessimismo tem seus encantos. Denota inteligência. Combina com o niilismo característico da juventude. Dialoga com o cinismo, tática infalível para construir uma personalidade sedutora. Mas sou um otimista. Porque apenas os otimistas temos uma visão realista do pessimismo. O pessimista se frustra porque esperava que as coisas estivessem melhores. O otimista encara o cenário como um poço sem fundo: sempre poderia estar pior.

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Em última análise, sou otimista porque sou pai (alô, Piangers!). Se Brás Cubas (o personagem de Machado de Assis) não teve filhos para não transmitir a nenhuma criatura o legado da nossa miséria, comigo aconteceu o inverso. Até nascerem minhas duas filhas, não ver nenhum sentido na passagem por este plano funcionava como uma estratégia preventiva. Sem expectativa, sem decepção. Depois de descobrir os efeitos do amor incondicional, porém, jamais fui o mesmo.

Ficou claro o que é prioridade. A úlcera sumiu. Parei de me autossabotar. Passei a tentar ser um homem, marido, pai, profissional menos imperfeito. Não havia como não alimentar a crença no futuro.

Agora que você me conhece um pouco e sabe o quão babac… ops, otimista sou, preciso dizer que, ainda assim, nunca consegui entender por que a queda de Dilma Rousseff era acompanhada da convicção – não provas – de que o país (sic) “retomaria o rumo certo”. Sem entrar no mérito do impeachment, bastava pesquisar o perfil dos novos-velhos ocupantes do poder. A maioria já estava atolada em denúncias, muitas inclusive mais graves do que as justificadas para destituir uma presidente eleita pelo voto popular.

Do rodapé da minha concepção simplória de mundo, a equação não fechava. O Congresso derrubou um governo sob a acusação de corrupção. Em seu lugar, botou políticos com a ficha mais suja. E eles iriam consertar o Brasil? Como? Das muitas razões invocadas para explicar, a que mais me espanta é a alegada (para não escrever “suposta”) “articulação política” do vice que herdou a presidência. É um profissional, garantiam seus áulicos.

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O desenrolar da tragicomédia nacional mostrou justamente o inverso. Com a faixa no peito e a caneta no mão, o ex-interino e, quem sabe, futuro ex-titular mostrou-se tão ou mais, digamos, inábil do que a antecessora. Nomeou ministros e teve que desnomeá-los. Extinguiu cargos e teve que recriá-los. Disse e teve que desdizer. Para completar, trocou informações suspeitas com um corruptor sem desconfiar que estivesse sendo gravado. Como um reles amador.

A crise passará. Outros presidentes virão, trazendo consigo novas modalidades de se locupletar. Um dia a gente acerta, paciência. A questão que restará para o escrutínio da história é como parcela significativa da sociedade caiu nessa. Alternativa A: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Alternativa B: é a economia, estúpido. Alternativa C: pensamento mágico. As opções não são excludentes.

Vou precisar continuar muito otimista para não aproveitar o domingo da próxima eleição para fazer qualquer coisa que não seja exercer meu direito de cidadão. Ou me dar ao trabalho de ir até a seção onde estou lotado só para teclar o número da besta. Antes de me julgar, saiba que faço parte da tendência. Muito se fala sobre o aumento das abstenções, mas a grande mensagem das urnas no pleito de 2016 veio dos brancos e nulos, revela o doutor em Direito pela UFMG e mestre em Economia pela UnB Bruno Carazza.

No site de “análises críticas baseadas em dados empíricos” que mantém – Leis e Números (.com.br), leitura imperdível –, ele se debruçou sobre o alto número de eleitores que simplesmente não apareceram para votar ou invalidaram seu voto para tentar desvendar a relação dessa(s) prática(s) com uma desilusão generalizada com a política. Como as abstenções se elevaram dentro da média em comparação com eleições anteriores, com causas associadas a defasagens no cadastro do Tribunal Superior Eleitoral (eleitores já falecidos ou que mudaram de cidade etc), concentrou-se nos brancos e nulos.

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Para ter uma dimensão exata do processo, Carazza calculou os índices de um e de outro sobre o total de eleitores que compareceram à votação (e não sobre o total do eleitorado, como é a praxe) nas últimas eleições em todo o país, de 2002 ao ano passado. A primeira conclusão foi de que há uma nítida curva de crescimento de brancos e nulos em todos os cargos em disputa. A presidência apresenta os menores percentuais, mas o nível já está preocupante em postos como o de senador, com quase um quarto em 2014.

– Embora tradicionalmente se associe o voto branco ou nulo a protestos, há suspeitas de que estejam mais relacionados a erros do eleitor. O eleitor com baixa escolaridade ou pouca familiaridade para lidar com a urna eletrônica tem maior probabilidade de se confundir e apertar qualquer tecla para se livrar daquela obrigação – pondera com sotaque mineiro pelo celular.

Para ver se a hipótese se sustentava, o advogado-economista então coletou dados de todas as zonas eleitorais de 2002 em diante, chegou ao percentual de brancos e nulos e confrontou com a escolaridade dos eleitores. Aí o resultado o surpreendeu:

– Os votos brancos e nulos ocorrem com mais frequência nos locais com escolaridade mais alta. Portanto, há indícios suficientes para atribuir seu avanço a um comportamento do eleitor, principalmente nas regiões com melhores níveis em educação (e, extrapolando, mais alta renda). Essa tendência se adequa à narrativa de que, principalmente após as manifestações de junho de 2013, a forma tradicional de fazer política vem sendo contestada nos principais núcleos urbanos brasileiros.

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Uau, uma revolução pequeno-burguesa! Antes de se achar que há algo a comemorar, no entanto, é importante prestar atenção no alerta de Carazza, endossando a funesta previsão de alguns cientistas políticos: a lógica é isso se acentuar em 2018, abrindo caminho para um outsider – candidatos que renegam a política, vendendo-se como gestores e prometendo soluções milagrosas – se eleger.

– Até porque quase todos os insiders (os políticos profissionais) estão enrolados com a Justiça.

Aí eu vejo as fotos do périplo por Santa Catarina de um deputado federal carioca que fala para quem quiser ouvir que quilombolas não servem nem para procriar, que homossexuais são doentes, que os torturadores do tempo da ditadura eram heróis, que todo mundo deveria andar armado e identifico uma molecada apoiando suas ideias. Meu otimismo sofre um forte abalo.

Fui renovar minhas esperanças na manifestação convocada pelas centrais sindicais e movimentos sociais na quinta-feira à noite, em Florianópolis. Na pauta e no gogó dos participantes reunidos nas imediações do Ticen, no Centro, “Fora Temer” e “diretas já”. Conforme os organizadores, havia 10 mil pessoas – a impressão é de que tinha menos. Nas contas da PM, 4 mil – a certeza é de que havia mais, das quais 90% jovens com menos de 25 anos.

Dali a passeata seguiu para a Avenida Mauro Ramos até a Beira-Mar Norte e voltou ao ponto de partida pela Avenida Othon Gama d¿Eça, sempre acompanhada de perto pela Polícia Militar. No meio do caminho, paradas para protestar em frente à Assembleia Legislativa, ao Beiramar Shopping e ao hotel Majestic – por uma amarga ironia, o mesmo local onde o parlamentar extremista citado acima havia sido ovacionado pela manhã.

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Quando passou pelo Instituto Estadual de Educação, os manifestantes ocuparam a pista que lhes estava destinada (sentido Beira-Mar Norte) e se espalharam pela outra também, passando pelo meio dos carros. Poucos motoristas se dignavam a abrir o vidro para receber os panfletos distribuídos. Buzinadinha de cumplicidade, nenhuma. Um supermercado fechou as portas, ignorando os brados do carro de som de que “aqui não tem ninguém bandido, só trabalhador e estudante”.

Volto para casa mais confuso do que saí, sinal de que estou bem-informado. Lembro de Carazza ressaltando o fato de que as pessoas hoje se dediquem a servir à coletividade fora da política partidária, em entidades de âmbito privado como associações, ongs e organizações da sociedade civil de interesse público (oscip). E me vêm à cabeça Cândido ou O Otimismo, de Voltaire, um dos livros que, a cada vez que releio, provoca uma epifania em mim.

No romance, o protagonista é um jovem “reto de juízo e simples de espírito”, apaixonado pela filha dos barões, Cunegundes. Ele tem um preceptor, Pangloss, que ensina que “este é o melhor dos mundos possíveis” e que “as coisas não podem ser de outra maneira”. No decorrer da trama, acontece toda sorte de desgraça ao pobre Cândido. Mas nada a ponto de ele perder sua fé inquebrantável, expressa na famosa frase final: “Devemos cultivar nosso jardim”. O meu, orgânico, por favor.