O que hoje em Blumenau vem atrelado à palavra referência, no início dos anos 1980 era uma incógnita. Não se imaginaria que, dali em diante, 2.650 transplantes seriam feitos no Hospital Santa Isabel (HSI) e que esse número ajudaria a alavancar os índices de envolvem doação de órgãos em Santa Catarina. O sucesso do procedimento, o interesse em qualificar ao sistema e a reciprocidade do Estado quanto ao assunto fizeram com que a cidade do Vale do Itajaí se tornasse líder em número de transplantes.

Continua depois da publicidade

Conforme dados da Central de Captação, Notificação e Distribuição de Órgãos e Tecidos de Santa Catarina (SC Transplantes) referentes a junho deste ano, Santa Catarina chegou à marca de 39 doadores para cada 1 milhão de habitantes. Esse número é o melhor de todo o hemisfério Sul e, se considerarmos o Estado com status de país, ficaria atrás apenas da Espanha. Todos os países que ocupam os cinco primeiros lugares no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU (Noruega, Austrália, Suíça, Alemanha e Dinamarca) têm números consideravelmente mais baixos do que a média dos 295 municípios catarinenses.

::: Leia mais notícias sobre saúde

Nos 16 anos que se passaram depois do primeiro procedimento, foram feitos apenas outros cinco. A partir de 1995, quando 12 cirurgias foram feitas, o Hospital Santa Isabel deu início à uma série histórica que levou Blumenau ao status de referência. No ano 2000 a instituição alcançou pelo segundo ano consecutivo a marca de 30 transplantes de rim e fez os primeiros procedimentos envolvendo córnea (três) e coração (quatro). Dois anos mais tarde passou a realizar intervenções que envolvem o fígado – um dos principais feitos no hospital, com 127 apenas no ano passado – e, em 2005, o pâncreas.

Na opinião do coordenador da SC Transplantes, Joel de Andrade, o mérito de Blumenau se dá por vocação. Ele explica que o município entendeu a relevância de centralizar o atendimento em nível estadual e qualificou profissionais, colocando a cidade entre as capitais nacionais da medicina de alta complexidade.

Continua depois da publicidade

— Quando a gente fala de transplante, há uma corrente diferente de qualquer outra área da medicina, em que centralizar é melhor que descentralizar. É preciso que os profissionais responsáveis pelo procedimento o façam mais vezes, para que façam sempre melhor — justifica o coordenador da SC Transplantes.

Chefe do serviço de transplante cardíaco do Hospital Santa Isabel, Frederico José Di Giovanni é quem lidera a equipe de uma das cirurgias mais delicadas. Para ele, a cidade alcançou esse patamar pelo grau de exigência adotado e a forma com que se abraçou o projeto desde o início.

— Inicialmente existe toda uma questão técnica, é claro, já que Blumenau se preparou, apresentou projetos, captou recursos e investiu nessa área. Mas o fato de as pessoas que exercem esse papel acreditarem no que fazem é o que a torna essencial para o Estado — avalia.

Capacitação melhora a captação de órgãos

Coordenadora da Comissão Intra Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecido para Transplantes (Cihdot), Gisélia Theiss destaca a capacitação de profissionais para conscientizar doadores e acompanhar a família. Ela explica que preparar as pessoas às funções que envolvem a doação é um dos pontos principais para evitar o escape – terminologia usada para os órgãos que se perdem e que poderiam ter sido aproveitados em transplantes.

Continua depois da publicidade

— De nada adianta termos um potencial doador sem que os profissionais saibam lidar com a família em um momento de dor. A população é a mesma, o que mudou é que quando se começou a preparar melhor as pessoas em Blumenau, aumentou a captação — diz Gisélia, que aponta esse motivo para o município ter ampliado o total de procedimentos a partir de 2010.

Desafio é manter a qualificação e ampliar serviços

A qualificação da equipe de médicos e enfermeiros que faz o contato com as famílias é um dos principais segredos que fizeram de Blumenau referência. Manter essa condição é um dos desafios para fazer a cidade elevar o número de procedimentos. Trabalhar com a motivação dos profissionais sempre no índice máximo é algo essencial na avaliação do chefe do serviço de transplante cardíaco do Hospital Santa Isabel, Frederico Di Giovanni.

Aquilo (o órgão doado) é um diamante para quem vai receber, e as pessoas que trabalham com isso precisam sempre estar com muita vontade –compara o médico.

Conseguir novos serviços também é um passo apontado para a evolução do serviço de transplantes. O coordenador estadual da SC Transplantes, Joel de Andrade, cita a necessidade de implantar serviços que o Estado não tem. Um exemplo é o transplante alogênico de medula óssea (quando vem de outro doador). Continuar buscando a redução do escape _ terminologia para quando os órgãos dos potenciais doadores são perdidos – e melhorar o ritmo da fila são outros avanços citados por Andrade.

Continua depois da publicidade

A continuidade dos investimentos hospitalares e em equipamentos, um dos fatores que permitiu à cidade alcançar o status atual é outro desafio citado pela chefe da equipe de transplantes hepáticos do Hospital Santa Isabel, Maíra Silva de Godoy. Uma reforma do ambulatório de transplantes, prevista para o ano que vem, e a ampliação dos leitos desse setor são demandas apontadas como necessárias.

Aeroporto precisa de melhorias

Fundamental para agilizar o transporte de órgãos entre pontos, o Aeroporto Regional de Blumenau é um ponto fora da curva quando se fala da referência que a cidade tem em relação aos transplantes de órgãos.

Sem balizamento noturno – estrutura que garante pouso e decolagens à noite e define claramente a zona de pouso – o Aeroporto Quero-Quero, como é popularmente chamado, torna-se um empecilho para os transplantes quando o sol de põe.

Por ser um processo com um curto espaço de tempo, a captação, envio e procedimento cirúrgico para um transplante ocorre em uma fatia minúscula de tempo. Qualquer minuto perdido pode se tornar um problema.

Continua depois da publicidade

Para resolver essa demanda é necessário um investimento de R$ 1,5 milhão, valor que já foi aprovado pela Secretaria Nacional de Aviação Civil, com previsão de ser liberado para o município no próximo ano.

Até lá, todo qualquer pouso ou decolagem de equipes de transplante em Blumenau pode ocorrer apenas durante o período entre o nascer e pôr do sol. No caso do Hospital Santa Isabel, em casos extremos há a possibilidade de que a logística seja feita por helicóptero em uma estrutura homologada anexa à instituição.

Agilidade nos exames é diferencial

Olga Lúcia Viegas Marcondes, 65 anos, sempre associou a fadiga intensa que sentia aos dias estressantes de professora nas escolas de Presidente Prudente, no interior paulista. Somente em 2004, com um diagnóstico médico, descobriu que a estafa era um dos sinais de uma cirrose biliar primária, doença congênita no fígado que exigiria que ela passasse por um transplante.

Durante cinco anos esperou na fila de pacientes de São Paulo, sem ser chamada. Em janeiro de 2009, depois de uma crise em que os sintomas ficaram intensos e ela teve 70% de chance de não resistir, o próprio médico dela indicou que fosse para a cidade que ainda hoje é vista como um Eldorado para pacientes que precisam de transplante no país: Blumenau.

Continua depois da publicidade

Olga fez as malas e partiu com o marido para um flat alugado no bairro Victor Konder no município catarinense. Aqui, entrou na fila em fevereiro e apenas 45 dias depois recebeu a notícia pela qual esperava: a descoberta de um doador compatível.

Depois de nove meses entre idas e vindas para acompanhamento médico no pós-transplante, em janeiro de 2010 ela se mudou para Blumenau. Olga passou a atuar como representante do Grupo Hércules, uma ONG que ajuda pacientes de todo o país com doença hepática recém-descoberta e também quem passou por transplante no processo pós-operatório e na recolocação profissional.

Diagnóstico e transplante em menos de uma semana

Os índices de doadores e de procedimentos não só fazem de Blumenau referência em transplantes como também colocam o serviço à frente até mesmo de procedimentos da saúde básica quando o assunto é agilidade.

A rapidez para o transplante foi o que salvou a vida de Ana Caroline de Oliveira há cinco anos, hoje com 23. Tudo aconteceu em menos de uma semana. Em uma sexta-feira de 2012, Ana sentia dores de barriga e procurou um pronto-atendimento. O médico identificou um problema no fígado e pediu que ela ficasse internada.

Continua depois da publicidade

De sábado para domingo, enquanto fazia exames, o quadro piorou e na segunda ela já apresentava quadro de falência do órgão. Uma médica do Hospital Santa Isabel pediu uma biópsia do fígado, o que a essa altura já trazia risco de vida para Ana, e identificou que ela precisava de um transplante em 48 horas. Ana virou prioridade zero. Entrou na fila na terça e dependia de um doador, que surgiu no dia seguinte.

Passados os dias do pós-operatório turbulento, a estudante de Administração hoje recebe acompanhamento médico, leva uma vida normal com trabalho e exercícios como pilates e crossfit e não tem dúvidas de que venceu essa batalha graças à intervenção de Deus e à agilidade dos médicos e da equipe.

– Se eu estivesse em outro lugar tenho certeza de que não teria conseguido – diz.