Cristiane Derani, professora de Direito Ambiental na UFSC, dois pós-doutorados na área, livros e inúmeros artigos publicados e uma das maiores estudiosas do assunto no Brasil, é uma dessas profissionais que Floripa teve a sorte de receber pronta. Assim como outros especialistas altamente qualificados que escolheram a Ilha para viver, Cris foi atraída pela qualidade de vida da capital catarinense, deixando em SP o cargo de professora da USP, onde também se formou e fez mestrado, e um escritório próprio que já havia prestado consultoria para empresas como a Natura.
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De Floripa, onde fixou residência há sete anos depois de passar em concurso para professora da UFSC, Cris não planeja sair jamais. Mas vai e volta para destinos tão conceituados como a Universidade de Cambridge, de onde recém-chegou e onde foi recebida como professora visitante. Aos 50 anos, ela, que fundou o primeiro mestrado em Direito Ambiental do Brasil, em Manaus, pertence à primeira leva de profissionais especialistas no assunto que só surgiria como disciplina de graduação quando a paulistana já era doutora, em 2001.
Com a coluna, a professora casada, mãe de dois filhos e moradora de uma confortável casa no Porto da Lagoa falou sobre sua trajetória e o estudo do meio ambiente no Brasil e no mundo.
Quando escolheu cursar Direito na década de 1980 já pensava em atuar na área de Meio Ambiente? E nessa época, o que se discutia sobre o tema no Brasil?
Sim, fiz direito para defender o meio ambiente. Era década de 1980 e os movimentos estavam aflorando com o final do regime militar no Brasil. Quando aconteceu a Eco-92 eu já estava na Alemanha fazendo o doutorado. Durante a faculdade na USP, nossa pauta de lutas eram as hidrelétricas na Amazônia e a usina nuclear Angra (RJ). E tivemos dois grandes acidentes que acabaram aglutinando muito as pessoas na época: o derramamento da indústria química em Bhopal, na Índia, em 84, e Chernobyl em 1986. Foi aí que comecei com a advocacia: a gente propunha ações pra o Ministério Público como a que impediu a importação do leite em pó contaminado de Chernobyl. Mas ainda era tudo muito incipiente por aqui. Quando terminei a graduação, comecei a fazer mestrado em Direito Econômico na USP e ainda não havia Direito Ambiental nem como disciplina. Depois postulei bolsa pra Alemanha e fiz doutorado em Frankfurt, onde fiquei dois anos e meio. Meu projeto era a relação entre meio ambiente, economia e direito. Ali entrei em contato com toda a discussão de como o direito influencia a atividade econômica a fim de que ela seja menos danosa ao meio ambiente. Minha tese virou livro em 1997, teve cinco edições e até hoje a publicação é referência no tema.
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Como era a sociedade alemã em termos de consciência ambiental na década de 90?
Na época, eles estavam começando a implantar o ponto verde. Hoje ele é uma imposição da Alemanha: qualquer produto que se venda lá tem que ter o ponto verde, o que significa que contribui com um percentual do valor para uma empresa de economia mista alemã que se encarrega da reciclagem daquela embalagem. Foi muito triste porque quando eu voltei para o Brasil, estava instalada a garrafa pet, na contramão de tudo que tinha visto. A Alemanha sempre foi uma exceção, mesmo na Europa. Eles mesmos falam que preferem ter uma atitude mais restritiva em relação à indústria e aos produtos hoje porque amanhã eles vão vender a tecnologia para União Europeia. De fato, eles faturam na indústria de meio ambiente. Na época, o Partido Verde alemão estava em alta, era a grande ideologia do momento.
As empresas ainda encaram o investimento em tecnologia limpa como algo dispendioso? E realmente é?
Obviamente você tem que investir mais, mas o retorno é maior. É o que a Natura fez. As empresas grandes são as mais conscientes em relação a isso. Porque tem todo o relatório de responsabilidade social e ambiental, relatórios para os acionistas e selos, certificados. Nas maiores, é mais fácil trabalhar com a questão ambiental como um ativo.
E quais são os setores mais problemáticos?
Os de infraestrutura são os piores. Mineração, rodovias e agricultura, que foi beneficiada com a mudança do código florestal e nem o pouco que é exigido é preenchido. E é curioso porque é uma indústria que vive do meio ambiente, mas é extremamente imediatista. Hoje eu estudo alimentos, mudanças climáticas e biodiversidade no Direito Ambiental e o Brasil dentro dessa questão é um objeto de curiosidade por dois motivos: nós alimentamos o mundo e nós destruímos o que temos. A preocupação não é só do lado ambientalista, mas de política econômica e mesmo de comércio internacional. Volta e meia me chamam pra falar até por ser brasileira. Recentemente, por exemplo, dei uma palestra para os editores da revista Nature para falar sobre direito ambiental, mas sei que o fato de ser brasileira pesou para me chamarem. O Brasil tem a maior biodiversidade e a maior bacia hidrográfica do mundo. O mundo quer saber como está a nossa política climática.
E em termos de políticas ambientais, em que patamar o Brasil se encontra?
Quando surgiu a Constituição de 1988 com um capítulo destinado ao Meio Ambiente, isso mobilizou muito o Ministério Público, a sociedade civil, o judiciário. Eu trabalhei no final do mandato do Fernando Henrique Cardoso na parte de habitação e meio ambiente e dei assessoria para o Ministério do Meio Ambiente sobre biodiversidade durante o primeiro mandato do Lula. Acho de 1988 até 2002 houve uma propagação maior dessas ideias. Os arranjos e as lutas pelo código florestal, que aconteceram entre 2007 e 2014, enfraqueceram muito o setor, que ficou bastante polarizado.
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Como foi a experiência em Cambridge?
Tive muita sorte, pois cheguei lá no início de 2016 e fui colocada em um prédio recém-inaugurado multidisciplinar. Com construção inteligente e supermoderna, o espaço abriga toda a parte da universidade dedicada à conservação ambiental. Então lá convivi com biólogos, zoólogos, ecólogos e ONG¿s que desenvolvem projetos com a universidade.
Tanto o meio acadêmico quando o jurídico são áreas ainda dominadas por homens. Como foi começar muito jovem nesses universos?
Fui a livre docente mais jovem da USP e a primeira professora em direito econômico no Direito da Universidade. Quando passei no concurso só tinha 31 anos. Não foi fácil. Sofri muito, fui preterida e denegrida. Uma mulher jovem nesse meio significava para eles duas coisas: ignorante e desfrutável. Mas abri espaço pela minha produção. O bom é que essa é uma área que o que vale é o que está ali (diz, apontando para seus livros com seus produções acadêmicas).