*Por Eric Asimov
Esta é uma história sobre o que acontece quando uma das alegrias da vida vai embora, talvez para sempre. Neste caso, é o vinho, mas poderia facilmente ser a pintura, a dança, a culinária ou jogar golfe ou tênis.
Continua depois da publicidade
A perda potencial desses prazeres, é claro, é trivial em comparação às catástrofes sociais e pessoais que a pandemia do coronavírus infligiu. Ela já levou amigos e entes queridos, destruiu empregos e empresas e abalou a vida de muitos. O custo humano tem sido imenso.
Ainda assim, as pessoas continuam querendo saborear o que amam, o que moldou sua personalidade e sua vida. Querem voltar a bares e a restaurantes, namorar e encontrar romance, jogar softbol nos fins de semana e praticar mais uma vez o surfe selvagem.
O prazer do dr. Michael Pourfar era o vinho, principalmente nos fins de semana, quando ele e sua esposa Jennifer saíam de Manhattan e iam para o Vale do Hudson com seus filhos, Alex, de treze anos, e Caroline, de nove.
Continua depois da publicidade
A perda desse prazer remonta a uma manhã, em meados de março, quando a esposa de Pourfar lhe disse que não conseguia sentir o cheiro do café.
Michael Pourfar, de 49 anos, neurologista especializado no tratamento de pessoas com doença de Parkinson e outros distúrbios nervosos, não havia tratado diretamente os pacientes com Covid-19, mas conhecia os sintomas.
Seu hospital, o NYU Langone Health, em Manhattan, foi fortemente atingido nos primeiros estágios da pandemia, e Pourfar já havia visto um número suficiente de pacientes com coronavírus para entender que a perda do olfato era um possível primeiro sinal de infecção.
Ele também percebeu que, se sua esposa estava infectada com o coronavírus, ele também tinha uma chance maior de estar.
Continua depois da publicidade
Como qualquer pessoa, ele primeiro pensou nas possibilidades mais mórbidas e ficou particularmente preocupado com seus filhos. Mas seu treinamento médico logo falou mais alto. Depois de avaliar racionalmente a situação, ele concluiu que, embora todos pudessem ficar doentes, as chances de a doença evoluir para um quadro grave eram baixas. Por enquanto, ele e a esposa precisavam manter uma rotina calma para o bem dos filhos e também para sua própria paz de espírito.
Naquela noite, manter a rotina significava escolher uma garrafa de vinho da adega. Isso fazia parte dos hábitos do fim de semana, e Jennifer Pourfar queria uma taça, embora não conseguisse sentir cheiro algum.
Sabendo que essa poderia ser a última garrafa de que eles desfrutariam durante algum tempo, ele ponderou sua escolha.
Pensou em pegar algumas das garrafas mais preciosas que possuía – talvez um Domaine de la Romanée-Conti, um dos grandes borgonha ou um Cheval Blanc, um bordô igualmente sagrado. Mas escolheu uma garrafa de Williams Selyem, um pinot noir do Vale do Rio Russo, um vinho que ele e sua esposa descobriram no início do casamento e desfrutavam juntos regularmente.
Continua depois da publicidade
Poucos dias após abrir o Williams Selyem, o casal estava com febre, dores, calafrios e uma tosse implacável. Não conseguiam sentir cheiro algum, nem sentir o gosto de comida que se obrigavam a comer.
Eles, no entanto, não estavam suficientemente doentes para ir ao hospital. Em vez disso, ficaram de quarentena em casa, onde estabeleceram turnos para cuidar dos filhos. O garoto apresentou sintomas leves e a menina, nenhum sintoma. Mas, para os pais, a doença se arrastou.
“Você pensa que está melhorando, então a noite chega e você percebe que ainda não se livrou da doença. Não era realmente um dragão, mas tinha uma cauda longa”, disse Michael Pourfar.
Depois de um mês inteiro, eles começaram a se sentir muito melhor. Os sintomas de Michael Pourfar não desapareceram por completo até meados de maio. Seu olfato, no entanto, não retornou. Ele entendeu que perder a capacidade de apreciar o vinho era um preço pequeno a pagar pela vida e pela saúde. Ainda assim, não deixou de sentir que, de certa forma, ele havia ficado menor.
Continua depois da publicidade
Como muitos amantes de vinho, ele construiu, ao redor da busca por uma garrafa, algo que chamou de “rituais reconfortantes da vida”: “A seleção ponderada, o manuseio cuidadoso, a abertura lenta e deliberada e o ato de cheirar o conteúdo de maneira pensativa, com um pequeno sorriso, tudo havia ido embora”, comentou ele.
Pouco depois de adoecer, ele se exercitava diariamente, em parte na esperança de reabilitar o olfato e em parte por curiosidade científica. Por conta de sua relativa sutileza, o vinho estava além de sua capacidade, mas ele começou a cheirar café pela manhã e Rémy Martin X.O., um conhaque particularmente aromático, à tarde, todos os dias, para medir sua sensibilidade.
No início, não sentiu cheiro algum. Mas lentamente seu olfato começou a voltar. A cada dia, ele monitorava seu progresso e media sua habilidade usando uma escala derivada da hierarquia de classificações do conhaque: V.S. representaria um traço do retorno do olfato; V.S.O.P., um retorno moderado; e X.O., a recuperação completa.
A trajetória, como a recuperação total, foi frustrante e irregular. Após duas semanas de altos e baixos, ele se viu no platô do nível V.S.O.P. Gamas inteiras de aromas pareciam estar fora de seu alcance, mas seu gosto pelo vinho estava voltando.
Continua depois da publicidade
“Só quando começa a melhorar é que você percebe que deseja recuperar parte de si mesmo. É uma alegria que faz parte de algo maior. Nem todo mundo se sente assim em relação ao vinho, mas se sente assim em relação a alguma coisa”, observou Pourfar.
Ele concluiu que não poderia apreciar a sutileza dos vinhos que adorava, como bons borgonha. Em um primeiro momento, considerou isso uma espécie de purgatório do vinho, um limbo para o qual o desejo havia retornado, mas os meios de satisfação, não.
Em seu estado diminuído, ele notou que seus gostos estavam começando a mudar. Estava sendo atraído para os vinhos mais ousados e efusivos que apreciara quando era mais novo, mas que acreditara ter deixado para trás.
O zinfandel, que ele considerara exagerado, passava agora a ser apreciado como vibrante e vivo. O sauvignon blanc da Nova Zelândia, que ele achava dominador, agora parecia distinto e bem-vindo.
Continua depois da publicidade
Mas o mais especial, segundo ele, foi ter encontrado novamente o amor e o respeito pelo bordô, outro velho favorito que ele havia praticamente abandonado por completo. “Descobri, agora, que sou grato por esses vinhos que achava ter deixado para trás.”
Seu caminho em direção à recuperação também o levou a considerar o papel que o vinho passou a desempenhar em sua vida, não apenas como uma bebida agradável, mas como um componente essencial de seu caráter. Ele se pergunta se sua nova experiência com o vinho o transformou como pessoa.
“Todos nós compomos um caleidoscópio sensorial a partir de nossas experiências de vida que molda nossa apreciação do mundo. Perder a apreciação dos sabores do vinho era, para mim, como perder a cor vermelha do meu caleidoscópio. O mundo ainda estava bonito e eu era grato pelos verdes, pelos azuis e pelas outras cores que restavam, mas percebi que algo importante e familiar havia sumido, e o mundo simplesmente não era mais o mesmo”, completou o médico.

The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
Continua depois da publicidade