Um pedacinho de terra na zona rural de Joinville conta um episódio recém descoberto da história da população negra na cidade. Em um bairro com grande influência dos colonizadores alemães, a comunidade preta também construiu memória. Isso porque, no início do século passado, foi construída na Estrada do Pico, em Pirabeiraba, a chamada Escola África, criada para acolher filhos de antigos escravizados e imigrantes luso-brasileiros.
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O registro foi encontrado recentemente, quando historiadores procuravam um outro documento no livro de requerimentos da prefeitura de Joinville. Durante as buscas, em anotações referentes ao ano de 1915, os pesquisadores encontraram a solicitação de moradores da Estrada do Pico para que a prefeitura, na época superintendência, desse um auxílio para a escola localizada no lugar denominado “África”.
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Dilney Cunha, coordenador do Arquivo Histórico de Joinville, conta que, a partir dali, foi como montar um quebra-cabeças. A partir do encontro do primeiro documento, foram encontrados novos documentos no setor de cadastro técnico dos imóveis mais antigos da prefeitura. Segundo Dilney, inclusive, o imóvel na Estrada do Pico aparece com a denominação de Escola África. Uma outra historiadora, que tem trabalhos na região de Pirabeiraba, tinha documentos do antigo colégio da comunidade negra que ali vivia.
Dilney explica que a escola recebeu descendentes de escravizados e também filhos de antigos imigrantes, principalmente luso-brasileiros que chegaram ao Brasil no século 19.
— Famílias se estabeleceram com engenhos, com plantações de cana e também levaram para lá escravizados. Com a alforria, a abolição da escravidão, em 1888, essas pessoas, em parte continuavam trabalhando para os seus antigos proprietários, em condições praticamente iguais a em que eles viviam como escravizados. Adquiriram um pedaço de terra, um pequeno lote, nas imediações ou em outros locais para começar ali uma vida nova, de muito sacrifício, praticamente só para subsistência. O que nos leva a acreditar que se formou uma comunidade afrodescendente, com esses antigos escravizados e depois os seus descendentes. Por isso o nome África — explica Dilney.
Com a criação da unidade escolar, em 1914, no ano seguinte os sócios pedem apoio da superintendência para manter a escola por meio de subsídios da prefeitura junto com os pais. O requerimento foi aprovado e assinado pelo próprio superintendente na época, o prefeito Abdon Batista. A partir de 1950, a prefeitura municipal adquire o imóvel e passa a administrar a escola. A escola funcionou até os anos 1970 e na década seguinte o imóvel foi demolido.
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Importância do descobrimento histórico
Para Rhuan Carlos Fernandes, historiador, mestre em patrimônio e membro do Movimento Negro Maria Laura, a descoberta fortalece a história da população preta na cidade. Ele também cita que o território alto denominado África é também um pedido de reconhecimento e identificação já antigo. Rhuan lembra que, atualmente, há outros grupos negros na cidade que usam esses nomes para identificar um território africano como o Kênia Clube e o time de futebol Senegão, que remetem aos países Quênia e Senegal.
— É uma tentativa de autoidentificar um território em que o processo de colonização e escravidão fez a gente perder. Eu acho que esse território é emblemático, inclusive, porque ele vai pedir para o superintendente Abdon Batista, que era um homem negro e baiano. A gente fala muito pouco sobre isso. É emblemático que esse pedido seja para o Abdon Batista enquanto “prefeito”. Para nós é muito importante porque Joinville não consegue se auto explicar enquanto território, só a partir da leitura da história germânica da Cidade. Joinville também é uma cidade negra, indígena, alemã, portuguesa, não só de uma cultura, de uma população — destaca Rhuan sobre a importância do registro histórico.
Dilney ressalta a importância do descobrimento para mostrar que Joinville sempre foi uma cidade plural, construída por muitas mãos e pessoas de diferentes origens e nacionalidades.
— Antes mesmo da fundação oficial da Colônia Dona Francisca, lá em 1851, você tem aqui uma população de afrodescendentes e luso- brasileiros. Sem dúvida, houve um processo de colonização acelerado aqui, uma ocupação por parte desses imigrantes germânicos. Esse discurso realmente foi muito reforçado, acabou prevalecendo e invisibilizando outras memórias, como dos afrosdescendentes — cita Dilney.
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Por isso, o historiador reforça que descobertas como esta são importantes para destacar a contribuição de outras populações, como o povo preto, que foi fundamental para o desenvolvimento e construção dessa cidade.
— Essa população estava aqui e o que nós trazemos com esses registros deste lugar chamado África reforça esse discurso, da pluralidade, da construção de uma cidade a muitas mãos e que a população negra teve essa participação fundamental e obviamente, também contribui para a gente combater o racismo e a discriminação e defender uma democracia cultural e étnica aqui na cidade — defende.
O novo descobrimento deve ser costurado em uma nova edição do livro “Fragmentos negros: perspectivas sobre a presença negra em Joinville/SC”, comenta Rhuan. O exemplar traz vários episódios da presença da população preta na cidade. Outras histórias encontradas durante as pesquisas dos últimos anos também devem fazer parte do novo exemplar.
— A gente pode pensar esse território também como história extremamente negra e que constrói uma possibilidade de olhar para Joinville de uma outra maneira, uma maneira que agregue todas as populações que tiveram aqui para construir esse território — finaliza Rhuan.
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* matéria elaborada em parceria com o repórter Reginaldo de Castro, NSC TV
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