Um trecho do hino do Rio Grande do Sul se tornou alvo de críticas por uma suposta conotação racista em seus versos. A polêmica ganhou força depois que cinco vereadores negros eleitos permaneceram sentados e se recusaram a cantar o hino durante a cerimônia de posse da nova legislatura da Câmara Municipal de Porto Alegre (RS), em 1º de janeiro.
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A crítica envolve o seguinte trecho do hino: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Ainda na sessão de posse, o protesto da bancada negra foi criticado pela vereadora Comandante Nádia (DEM-RS), que cobrou disciplina e respeito aos símbolos. Como resposta, o vereador Matheus Gomes (PSOL-RS) afirmou que os vereadores não tinham obrigação de cantar a parte do hino que consideram racista e citou o fato de que a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URFGS) já não executa o hino gaúcho em cerimônias na instituição.
A partir de então se estabeleceu um debate no Estado sobre se o hino é ou não considerado racista.
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Reações de vários setores
Os vereadores da chamada bancada negra e que fizeram o protesto sustentam que o trecho tem sim conotação de discriminação. Em uma sequência de tuítes, o vereador Matheus Gomes defendeu que a única forma de escravidão registrada no período da Guerra dos Farrapos, época ao qual o hino faz referência, foi a dos negros e citou episódios de discriminação durante a revolução. O parlamentar cita que outro trecho do hino sem relação com o Estado e com referência a gregos e romanos foi retirado da letra em 1968, e questiona: “Se outras estrofes que não tinham relação com a história do RS foram retiradas, por que essa permanece?”.
Gomes frisa que a briga dos Farrapos contra o Império era sobre fim dos impostos e não questionava a escravidão, e encerra propondo a retirada da obrigatoriedade do hino nas celebrações do Estado.
“Nas ‘façanhas que servem de modelo a toda terra’ [referência a outro trecho do hino], precisa estar inclusa a contribuição negra ao RS. Temos história rica que precisa ser contada. É isso que queremos!”, postou.
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Por outro lado, houve reações como a do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Em nota nas redes sociais, a diretora do Departamento de Manifestações Individuais, Julia Graziela Azambuja, que é negra, afirmou que para o MTG, o trecho do hino no centro da polêmica “diz respeito a uma submissão da então Província de São Pedro ao Império, no período da Revolução Farroupilha. E nada tem de discriminatória”.
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Na mensagem, ela afirma que enquanto a comunidade negra se prende a este tipo de polêmica, “perde um precioso tempo de ser protagonista de uma nova história que cabe aos próprios negros e brancos escreverem”. O MTG pontua ainda que reconhece a importância dos negros na revolução e na construção da identidade regional dos gaúchos e que seguirá na luta pela inclusão do negro na cultura local.
“No entanto, [o MTG] entende que ater-se a questionamentos que carecem de contextualização histórica desvia o foco daquilo que deve realmente ser discutido”, diz o trecho final da manifestação.
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Historiador também vê conotação racista em hino
O pesquisador e professor de pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), Tau Golin, dá razão aos membros da comunidade negra que apontam conotação racista no hino gaúcho. Para ele, com o passar do tempo o hino representam não só a historicidade e o contexto da época em que foi composto, mas também o discurso da contemporaneidade e “a ação prática dos indivíduos, de como se colocam no mundo”.
Na avaliação do professor, o trecho criticado pelos vereadores é um dos pontos que denota um caráter racista na letra.
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– Imagine um negro cantando um hino em que a condição de escravo remete diretamente à ausência de virtude. Um hino não é só um trabalho de historiagrafia, é uma manifestação que tem nexo do presente para o futuro – afirma.
No entanto, essa discriminação também está presente quando considerado o contexto histórico em que o hino foi composto, segundo o professor. Isso porque os farroupilhas seriam senhores de escravos antes e depois da guerra, além de autores de uma constituição que mantinha o negro como patrimônio e restringia direitos políticos mesmo para os libertos.
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– A realidade era ainda pior, mas a utopia desses rebeldes era ter, se viessem a vencer, uma república escravista. E eles escreveram a constituição de como seria essa república. Então onde aparece o racismo do hino: quando você toma um modelo e reproduz ad eternum como se isso fosse uma representação dos rio-grandenses. O problema é que nós vivemos uma realidade pós-constituição de 1988, em que se amarraram por fim no BR, depois de longo tempo, referenciais republicanos e democratas – pondera Tau Golin.
Ele sustenta que a solução seria manter o hino atual apenas como documento histórico e criar um novo hino para o Rio Grande do Sul.
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– Mas isso seria quase outra guerra – diz.
A reportagem tentou contato com o Movimento Negro Unificado (MNU) do Estado para comentar a polêmica, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
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Propostas sobre alteração da letra e posição para ouvir o hino
Após a polêmica, algumas propostas sobre o tema surgiram no Estado gaúcho. Os novos vereadores que acusam o trecho do hino de ser racista propõem o fim da obrigatoriedade da execução do hino em cerimônias.
O deputado estadual Luiz Fernando Mainardi (PT) afirmou que pretende protocolar um projeto na Assembleia Legislativa do RS para mudar a letra do hino em função da polêmica. A sugestão dele é que o trecho em discussão seja alterado para “povo que não tem virtudes acaba por escravizar. A proposta deve ser apresentada na volta do recesso dos deputados, em fevereiro.
Além disso, a vereadora de Porto Alegre, Mônica Leal (PP), apresentou uma proposta de alteração no regimento interno para determinar que os vereadores devem postar-se de pé e em posição de respeito durante execução do hino nacional e do hino do Rio Grande do Sul. A proposta também deve ser apreciada a partir da primeira sessão ordinária do ano na Câmara, em fevereiro.
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O Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul promoveu uma reunião plenária on-line com convidados nesta sexta-feira (15) para discutir a polêmica sobre a letra do hino do Estado. O debate deve auxiliar uma futura manifestação do órgão sobre o conselho.
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E em Santa Catarina?
Não é só no Rio Grande do Sul que o hino do Estado é alvo de polêmicas. Em Santa Catarina, a letra é considerada até antiescravista, com trechos como “quebram-se férreas cadeias, rojam algemas no chão” e “quebrou-se a algema do escravo”. No entanto, o hino já recebeu críticas por outro motivo: ser pouco conhecido e ter pouca identificação com questões locais do Estado.
Em 2012, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) chegou a criar uma comissão especial com oito integrantes para discutir uma possível alteração da letra do hino. A proposta havia sido apresentada dois anos antes, pelo então deputado Gilmar Knaesel (PSDB). Ele reconhece que depois isso a discussão no Estado “esfriou”, mas defende que, assim como o Rio Grande do Sul passou a discutir um ponto do hino que talvez não seja mais aceito na visão de mundo atual, discussão semelhante poderia se fazer também em SC.
Knaesel diz que na época a comissão decidiu encaminhar o assunto para o Conselho Estadual de Cultura avaliar se o hino deveria ou não ganhar uma nova letra ou até mesmo uma nova versão. A atual gestão do conselho informou que ao menos nos últimos cinco anos o tema sequer esteve na pauta do órgão, e que na época da discussão, o conselho se manifestou de forma desfavorável à proposta de mudança. A letra e o hino de SC permaneceram os mesmos.
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