O menino Artur Pagno Carvalho, cinco anos, recebe quem visita o Engenho do Zé apresentando-se cheio de caras e bocas como o diretor do espaço cultural e de convivência localizado na Praia do Santinho, em Florianópolis. As aulas de teatro ministradas no local pelo professor Andrei Dornelles são tão intensas para o garoto, que ele dá sequência à interpretação quase todo o tempo que frequenta as atividades gratuitas oferecidas no contraturno escolar às crianças da comunidade por meio do projeto Quintal do Engenho.
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– Faço aulas de tecido e teatro. As que eu mais gosto são… tecido e teatro – diz Artur, sem saber definir suas preferências entre as tantas atividades possíveis na casa lúdica.
A casa onde já funcionou um engenho de farinha de mandioca localizada próximo à praia, na Capital, tem ares de interior não só pela arquitetura, mas principalmente por receber crianças que preferem realizar atividades simples em vez de passar as tardes jogando videogame ou utilizando computadores, tablets e smartphones.
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Distância da tecnologia
– Eu até tenho Facebook, mas uso só quando não estou aqui para jogar bola – conta Ayecán Cardozo Olmedo, 13, que participa do projeto.
Colher fruta do pé, sujar-se de lama, andar descalço, pular a janela, tocar um instrumento musical, fazer barquinhos de papel, correr, cair e ralar os joelhos ou simplesmente fazer nada são atividades estimuladas pela equipe de pelo menos 10 orientadores que tomam conta das crianças.
– Eu só tenho Gmail [e-mail] para falar com a minha vó, que mora na Argentina, porque fica mais fácil. Prefiro estar aqui brincando – complementa a menina Camila Augspach Francisco, 10.
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Para Cristiano Nabuco, pesquisador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), crianças com dispositivos móveis virou um tipo de glamour. Ele também alerta que a tecnologia pode gerar mal-estar, ansiedade e hiperatividade nos pequenos.
– Quando os pais se orgulham da habilidade das crianças ao utilizar o telefone, estão favorecendo um tipo de acesso para uma população que ainda não tem controle total sobre o comportamento, abrindo uma porta perigosa. Quanto mais se puder evitar esse encontro da criança com a tecnologia, melhor para ela, que será exposta aos estímulos naturais para o seu desenvolvimento e desenvolverá inteligência emocional – adverte.
Liberdade é a metodologia
Nas tardes de Quintal, é comum encontrar um grupo consertando a correia de uma bicicleta, outro pulando em uma minicama elástica e ainda alguém que arrisque uns acordes no piano. Não há atividades fixas, horários ou imposições por parte dos adultos.
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– Vemos que existem muitas crianças que têm horários muito rígidos. Balé às 16h, piano às 17h, inglês às 18h. Aqui, elas devem ser livres. A inspiração para esse modelo veio de uma escola de educação infantil em São Paulo chamada Te-arte Criatividade Infantil, que dispensa método ou planejamento. A criança está acima de tudo e a brincadeira do dia a dia é que promove a aquisição de cultura – diz Julie Lockley, quem também toma conta das crianças no espaço.
No Quintal do Engenho, é possível – e estimulado – que os pequenos dancem até se cansar, olhem para o lado, peguem uma fantasia e iniciem um espetáculo de teatro, por exemplo.
– São experiências fundamentais para o pleno desenvolvimento da criança, que exigem tempo e liberdade – define uma das criadoras do Engenho do Zé, Valéria Binatti.
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Especialistas aprovam
Professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Gilka Elvira Ponzi Giardello diz que a brincadeira livre é fundamental à formação do presente e do futuro das crianças.
– Atividades junto a outras crianças, estruturadas por adultos, desenvolvem as chamadas culturas infantis. Quando as brincadeiras são tradicionais, valorizando a cultura popular brasileira, isso é melhor ainda. Da mesma forma, o contato com a natureza é importante para a formação – explica a especialista em educação.
Já o professor Edmir Perrotti, da Escola de Comunicações e Artes da USP, defende a disponibilização de espaços para as crianças brincarem nas cidades em seu texto “A cultura das ruas”. Para ele, o desenvolvimento urbano limitou as opções de locais seguros para as atividades infantis. Também argumenta que não se deve fornecer o consumismo como prêmio de consolo para o que elas perderam.
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Projeto busca recursos para expansão
O Engenho do Zé promove atividades culturais, artísticas e ambientais há mais de três anos no norte da Ilha de maneira voluntária e colaborativa. À medida que o espaço ganhou forma, sons, cores, movimento e agregou pessoas, inspirou a criação do projeto para as crianças. A casa e o quintal são bastante lúdicos e, a cada evento, mais crianças se aproximam e confirmam a vocação. Hoje 20 pequenos em média – depende da demanda – fazem parte do Quintal do Engenho nas tardes de terça e quinta-feira.
Mas segundo os orientadores, a ideia é expandir. Eles inscreveram o Quintal do Engenho em uma plataforma de crowdfunding – financiamento coletivo -, mas somente a metade do orçamento estipulado para manutenção das atividades para 300 crianças no segundo semestre de 2015 foi alcançada. Os quase R$ 12 mil doados, mas que não puderam ser resgatados porque o total não foi atingido, estimularam os idealizadores a irem atrás de cada doador.
– Vamos dar um jeito para atrair e dar suporte a mais crianças. Estamos reformulando a captação de recursos, que pagam os materiais e as pessoas envolvidas, e também estamos de olho em editais. O Quintal irá continuar – garante Valéria Binatti, espécie de mãe do espaço.
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Quem quiser ajudar ou levar uma criança para participar das atividades, pode entrar em contato com o Engenho do Zé pelos telefones (48) 3369-6740, 9977-6481, 9664-4177 ou pelo e-mail engenho.do.ze@gmail.com. O endereço é rua Dejalma Manoel Jorge, número 276.