Escondida na mata que cobre o Morro do Boi, em Balneário Camboriú, um dos trechos de maior movimento da BR-101 no Litoral, vive uma das poucas comunidades de descendentes de escravos em Santa Catarina.

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Ali, onde o tempo parece passar mais devagar, famílias lutam para manter viva a memória dos antepassados. Uma batalha que registra a primeira vitória: a confecção de um estudo antropológico, encomendado pelo Incra.

O documento atesta as origens quilombolas da comunidade e pode garantir um futuro melhor para as próximas gerações. O estudo cruzou dados da memória oral dos moradores do Morro do Boi com documentos oficiais, principalmente dos antigos senhores de escravos.

O relato é a base para o reconhecimento do grupo pelo governo federal. Além de proteger as terras que pertencem aos descendentes dos escravos, o processo também possibilita a implementação de políticas voltadas à preservação cultural da comunidade.

– A titulação garante que o território quilombola seja preservado como patrimônio histórico cultural, e as terras ficam para as gerações posteriores. Eles também podem acessar políticas públicas de desenvolvimento – explica o antropólogo Marcelo Spaolonse, do Incra.

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Foi a possibilidade de melhorias, e a conservação das terras e dos costumes, que levou Altair Leodoro, 55 anos, a organizar a Comunidade Quilombola do Morro do Boi. A dificuldade de se manter em local afastado, longe da vida na cidade, fez com que ao longo dos anos o grupo esvaziasse. Casas foram vendidas, e a pesca e a agricultura, que eram as bases da economia do grupo, esquecidas.

Vizinhos da 101

Hoje, a maioria dos descendentes de escravos trabalha no Centro de Balneário Camboriú, em hotéis, restaurantes e casas de família. Em parte, a mudança no comportamento dos quilombolas ocorreu devido à abertura da BR-101, na década de 70. A estrada cortou ao meio as terras que, até então, eram usadas para plantar.

– Antes se moía mandioca no engenho, se fazia beiju. Só sobrou o costume de colher café e torrar em casa – conta Sueli Leodoro.

Para ela, o reconhecimento pode ajudar os quilombolas a conquistar direitos como ter na rede municipal de saúde um profissional especializado em doenças que atingem em especial os negros, como a anemia falciforme, que pode levar à morte.

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– Não sei se será mais fácil, mas teremos mais meios para lutar. Aprendi que é isto que precisamos, ir à luta, dar a cara a tapa. Carrego esta força dos meus antepassados – diz Sueli.

O que falta para o reconhecimento

O estudo do Incra vai embasar um relatório que será publicado no Diário Oficial da União e do Estado, afixado na prefeitura e aberto para contestações. Terminada esta etapa, aguarda-se um ato formal da Presidência da República atestando o interesse social da área.

O processo ainda passa pela demarcação do território. Ainda não há data para o processo terminar. Hoje, 15 comunidades aguardam reconhecimento em todo o território de Santa Catarina.

Cultura ajuda a reviver origens

O estudo encomendado pelo Incra revelou que os quilombolas de Balneário Camboriú descendem de duas linhagens de escravos, pertencentes a donos de terras de Camboriú e Tijucas. Acredita-se que a escolha pelo Morro do Boi tenha ocorrido após a abolição da escravatura, em 1888.

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– As comunidades quilombolas não necessariamente são as que tiveram escravos fugitivos, que é um conceito já fundado no preconceito, porque o escravo fugitivo é um infrator. Quilombo tem a ver com resistência, são grupos que se mantiveram unidos – diz o antropólogo Marcelo Spaolonse.

No Morro do Boi, a herança dos antepassados sobrevive nas benzeduras de dona Margarida, bisneta de escravos e mãe de 10 filhos, que repete com feixes de plantas nas mãos e murmurando orações os rituais que aprendeu na infância.

Assim como as bonecas Abayomi, vendidas pela comunidade. Feitas de retalhos e amarrações, sem costuras, as bonequinhas teriam sido distração para as crianças na travessia da África para o Brasil.

>> Confira a galeria de fotos dos quilombolas