O orgulho que está semeado na terra em que se põe flores e pés está também nas palavras que se enraízam na história de um povo que, após receber pouco ou quase nada, agora quer florescer em um futuro de conquistas e garantia de direitos. É inspirada nas delicadas e coloridas orquídeas, flor-símbolo de Joinville, que Gorete Aparecida de Oliveira, de 47 anos, líder da comunidade quilombola Beco do Caminho Curto, em Joinville, projeta enfrentar as marcas deixadas na pele e carne por um passado espinhoso.
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De acordo com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Joinville, Araquari, São Francisco do Sul e Balneário Barra do Sul, cidades da região Norte de Santa Catarina, têm, juntas, 826 quilombolas, o que significa 18,5% desta população no estado catarinense. Araquari, com 480 pessoas, é o segundo município no ranking estadual.
Esta é a primeira vez que o Censo faz um levantamento demográfico desta população no país. Conforme os dados do órgão, Santa Catarina tem 4.447 quilombolas, o 21º estado entre as 27 unidades da federação. Eles representavam 0,06% da população residente total, que soma 7.609.601 pessoas. No Brasil, somente o Distrito Federal (0,01%) e São Paulo (0,02%) possuem proporção de quilombolas em relação à população total menor que a catarinense.
O Beco do Caminho Curto, cravado na região de Pirabeiraba, conhecida como a “terra de alemães” em Joinville, tem 41 casas, cerca de 181 moradores e foi reconhecido como comunidade quilombola em 2019, pela Fundação Cultural Palmares, do governo federal. Apesar de Gorete dizer que o documento é um símbolo de alegria e proteção, os moradores do local sofrem com racismo e ameaças, incluindo políticas.
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A liberdade para exaltar a própria existência e a construção enquanto povo ainda não é para todos. Das pontes para lá e cá de Pirabeiraba, se assumir como quilombola ainda é duelar contra receios. Não por vergonha das simbologias e contexto histórico, mas por conta dos insultos, bullying e preconceitos sofridos. Um dos casos aconteceu neste ano, logo após os moradores assistirem uma palestra do ator e escritor Lázaro Ramos na Feira do Livro.
A experiência de ir a um shopping da cidade, básica para a maioria da população, expõe as últimas tentativas dos que tentam fazer brotar exclusão no dia a dia daqueles que germinam a vida para além de cercas impostas no passado.
— Sofremos racismo. Seguranças vieram até mim, minhas filhas e crianças da comunidade questionando o que estávamos fazendo ali. Quando chegamos na entrada com cerca de 30 crianças, clientes brancos nos olhavam estranho. Falaram que iriam chamar seguranças para acompanhar o passeio, mas a gente não precisava disso. Percebemos o racismo que sofremos. Sentimos isso na pele — desabafa Gorete.
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A líder comunitária diz que é desafiador ser um quilombo em Joinville. Para ela, a construção da cidade valoriza os colonizadores, mas esquece da história de outros povos, incluindo os negros. O esquecimento que magoa a dignidade também fere o cotidiano. Olhares que machucam são sentidos para além do que a vista pode sentir em idas à lojas, mercado e farmácia.
— Joinville é uma cidade tão linda, mas tão preconceituosa. Parece que a gente não é bem-vindo. Tivemos um passeio no Museu dos Imigrantes e no Cemitério dos Imigrantes, me questionei por que não tem a história negra nesses lugares. Cade o povo negro? Cadê o povo mais pobre? As nossas raízes não são contadas. Quem montou o castelo? Quem construiu aquela casa? Parece que nos apagaram. Dói muito na gente — reflete.
O medo de morrer e a falta de estrutura
Em 30 de outubro de 2022, no segundo turno das eleições, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) era eleito para o terceiro mandato como presidente do Brasil, os quilombolas de Joinville enfrentavam manifestantes pró Jair Bolsonaro (PL). À época, os apoiadores do ex-presidente faziam bloqueios em rodovias e passavam constantemente pelo local. Irritada, a comunidade quilombola trancou a rua para impedir a passagem dos grupos. A manifestação fez Gorete achar que perderia a vida.
— Veio gente correndo, de moto, de carro, com pedaços de pau. Todos eram homens. Na nossa manifestação só tinham mulheres e crianças. Queriam entrar no quilombo. Achei que iríamos morrer — relembra.
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Após dias de vigília com apoio de movimentos sociais, os bolsonaristas foram embora. As ameaças, porém, ainda tiveram mais um episódio macabro.
— Avisaram que se voltassem iriam colocar fogo nas casas e iriam ‘meter bala’. No fim do ano, deixaram uma cabeça de peixe no nosso quintal escrito ‘petista’ — conta.
Além da violência, a comunidade sofre com a falta de estrutura e serviços básicos de sobrevivência. As casas, erguidas com paredes de madeiras castigadas pelo tempo e tijolos sem reboco, dividem o terreno com lama, lonas e roupas penduradas em varais. O saneamento básico só existe por ser feito pela Organização Sem Fronteiras (ONG) Engenheiros Sem Fronteiras e o local ainda não possui rede de energia elétrica. Para Gorete, a atenção do poder público é uma urgência para os moradores.
— Deveriam arrumar as casas para a gente ter uma moradia digna. Algumas não têm mais como alguém morar dentro. Precisamos pelo menos de energia elétrica e uma lombada na rua principal — ressalta.
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Orquídeas: pétalas de sonhos e orgulho
As barreiras do preconceito e falta de estrutura pesam nos ombros, porém, o orgulho de ser um quilombo reergue física e mentalmente a existência de Gorete. As palavras que ela expressa saem pela boca, mas foram construídas por quem deixou sangue e ensinamentos. Agora, ela e a comunidade mantêm viva a construção de consolidação e conquistas.
— Saber que nossos ancestrais lutaram para ter isso e a gente poder continuar é um orgulho. Mesmo com muita dificuldade, eu não sairia daqui por nada. Quando lembro do meu avô, nós cortando lenha com ele para o “alemão” dono da terra, lembro que aqui nós éramos escravos. Agora, podemos dizer que temos direitos iguais, é muito bom — celebra.
Se no passado as mãos eram castigadas nas horas de plantações e trabalho com pouca ou nenhuma remuneração, agora são ferramentas de Gorete para plantar e cuidar de orquídeas. A flor, que é símbolo de Joinville, também se torna inspiração e oxigênio para a líder comunitária.
— A minha flor preferida é a orquídea. Quando ganhei a primeira, foi amor à primeira vista. Eu plantaria muito mais se pudesse. Eu amo flores, elas me dão vida. Se eu estou em um dia triste, bem pra baixo, começo a mexer e cuidar delas. Amo plantar e cultivar. Podem me fazer tudo, menos mexer nas minhas orquídeas — brinca em um tom de afirmação.
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As sensíveis pétalas rosas, roxas, brancas e beges decoram a fachada de sua casa, mas também unem a família e abre caminhos para realização de sonhos, cada vez mais próximos de acontecer enquanto ela está acordada.
— Espero que a gente seja reconhecido, que não sofra mais racismo e cresça aqui na comunidade. Ter a liberdade de poder dizer o que quer ser. Jogo toda a minha esperança nos meus filhos e netos, que eles façam faculdade, para a gente ter professor, enfermeira, médico e advogado no nosso quilombo. Que eu esteja bem velhinha para ver que na comunidade temos um doutor. Tenho certeza que isso vai acontecer — finaliza.
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