“Hoje, é mais fácil entrar um fuzil de outro Estado em Santa Catarina do que uma peça de queijo”. A frase do deputado estadual Gelson Merisio (PSD), escrita em um artigo publicado no DC em novembro, procurava exaltar o rigor sanitário do Estado. Pode até parecer exagero; não para quem produz queijo artesanal de leite cru (não pasteurizado) em Santa Catarina e no Brasil. Agora, um projeto de lei estadual (470.5/2017) pretende facilitar a formalização e a legalização de pequenos fabricantes. Embora tenha sido feito a várias mãos, com a participação de agricultores e pesquisadores da UFSC, quem assina a proposta é o deputado estadual João Amin (PP).
— SC é reconhecida internacionalmente pelas questões sanitárias. Vendemos carne suína e de frango para o mundo inteiro. É claro que é preciso ter cuidados, mas temos de agregar valor e fazer com que esse pessoal saia da ilegalidade. A lei permitirá que 6 mil famílias paguem imposto e fabriquem mais um produto catarinense com potencial para ser reconhecido nacional e internacionalmente – diz o parlamentar.
O Estado já é um campeão quando se fala em qualidade dos queijos. Os produtos catarinenses ficaram na terceira posição no 3º Prêmio Queijo Brasil realizado em São Paulo, em outubro. Só que das 29 variedades laureadas, 17 não têm a venda formalizada e legalizada em SC, como o Kochkäse, produzido há gerações no Vale do Itajaí. Sem o impulso da formalização, justifica o PL, esses produtos correm o risco de desaparecer. Segundo o último censo agropecuário do IBGE, de 2006, havia 5,8 mil propriedades rurais que produziam queijo em SC, um queda de 90% em relação a 1996.
A nova lei beneficiaria, por exemplo, Cristiano Marchi, um produtor de 29 anos que faz o queijo Diamante – medalhista de bronze na premiação nacional -, nome da mesma região em que mora em Major Gercino. Há dois anos ele trilhou o caminho inverso do êxodo rural, ao sair de Florianópolis e voltar para sua cidade natal. Faz o queijo da mesma forma que seu pai e seu avô, com a “ajuda” das quatro vacas que chama pelos nomes Cristina (em homenagem a Kirchner), Gata, Beca e Morena. Mas, se não conseguir se formalizar e viver da produção, deve engrossar novamente as estatísticas de quem deixa o campo. Além do PL, ele aposta em um financiamento a fundo perdido obtido junto ao Banco do Brasil pelos produtores da região para a construção de sete queijarias modelo.
— Nós chegamos ao fundo do poço. Estava há dois anos parado. Agora, com o projeto das queijarias, se conseguirmos aprovar a lei, podemos pensar em ter turismo rural e outras fontes de renda. Muita gente já saiu daqui, porque você vai fazer o quê? Criar boi ou vender leite para a indústria? Aqui não tem diamante nenhum, nosso diamante é nosso queijo — diz Marchi.
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Embora o Ministério da Agricultura (Mapa) tenha, desde 2013, uma instrução normativa que permite a comercialização de queijo de leite cru, uma regulamentação que a Companhia Integrada de Desenvolvimento Agropecuário de SC (Cidasc) afirma cumprir, produtores se queixam das inúmeras exigências incompatíveis com quem não tem o tamanho de uma indústria. Para resolver isso, há uma lei estadual de 1997, específica para os pequenos. Na prática, contudo, ela seria ignorada por parte dos fiscais, de acordo com relatos de agricultores que pediram para não serem identificados, obrigando os pequenos a seguir as mesmas exigências da agroindústria, como pagar por um responsável técnico. Confrontada com a informação, a Cidasc silenciou a respeito.
— É claro que tem que ter cuidados. Mas hoje é impossível pros pequenos (da forma como é exigido), já que eles (os órgãos fiscalizadores) praticamente ignoram a lei de 1997. O PL vai ser fundamental inclusive na questão sanitária. Na nossa região tem mais de cem pequenos produtores que fazem queijo em casa e vendem escondido. Isso ia formalizar esse povo e melhorar a qualidade do que é feito – explica um agricultor.
Além de muitos não conseguirem se enquadrar nas leis, os que superam essas barreiras enfrentam outras. A burocracia brasileira é um entrave adicional. Um caso emblemático foi a apreensão, neste ano, de cem quilos de queijos artesanais pernambucanos num estande de cachorro-quente da chef Roberta Sudbrack no Rock in Rio. Embora todos os alimentos estivessem dentro da validade, com nota fiscal e selo de inspeção do Estado de origem, foram recolhidos por fiscais da Vigilância Sanitária sob alegação de não preencherem outros requisitos, como o selo de inspeção federal. É como se estivessem bons para o consumo de pernambucanos, mas inadequados para cariocas.
A médica veterinária da diretoria de inspeção de produtores de origem animal da Secretaria de Estado da Agricultura Mara Rubia Pinto defende que não é uma questão de burocracia, mas de saúde pública. A instituição, diz, se preocupa com o controle da brucelose e da tuberculose nos rebanhos, que podem ser transmitidas aos humanos.

Uma mineira em defesa do queijo catarinense
Mais do que simplesmente regularizar os agricultores, o projeto de lei traz, em detalhes, normas que devem ser seguidas para que se possa produzir e vender o queijo artesanal, como a implementação de boas práticas de ordenha.
— Hoje reclamam que os produtores não atuam em condições adequadas. A lei, além de exigir que eles cumpram alguns pré-requisitos, como a sanidade do rebanho e produção dentro dos parâmetros microbiológicos, vai dar a possibilidade de terem acesso ao apoio técnico dos órgãos públicos, que hoje só atende os formalizados – argumenta a doutoranda em Ciência de Alimentos na UFSC Michelle Carvalho, uma das redatoras do PL.
No Brasil, quem abriu o caminho para o reconhecimento dos queijos de leite cru foram os maiores especialistas no assunto, os mineiros. Desde 2002, alguns dos mais tradicionais produtores de Minas Gerais são legalizados. Mineira, Michelle encampa a defesa dos queijos tradicionais catarinenses há 15 anos. A pesquisadora veio para Santa Catarina ao ser contratada para prestar consultoria a produtores que compravam equipamentos de pasteurização.
— Eu comecei a ver que aquilo (pasteurizar) mudava o produto deles, descaracterizava, e decidi estudar os queijos artesanais catarinenses – explica.
Segundo o presidente internacional do Slow Food (organização não-governamental que defende modos de produção e alimentos tradicionais) e embaixador especial da ONU contra a fome, o italiano Carlo Petrini, há que se considerar ainda o lobby da indústria, já que com mais produtores artesanais de queijo, cai a oferta de leite para as grandes empresas.
— O leite cru é o único que garante a diversidade dos queijos, a pasteurização homogeneíza o produto. Os governos que escolhem pasteurizar em razão de uma fobia hiper-higienista não fazem justiça à biodiversidade – diz Petrini.
Na avaliação do gestor do departamento de inspeção de produtos de origem animal da Cidasc, Sergio Silva Borges, o projeto de lei dos queijos artesanais é “coerente” e “bem redigido”, mas ele reclama de a instituição não ter sido procurada para dialogar e ajudar na redação. Borges afirma não se opor, entretanto faz ressalvas:
— Como órgão fiscalizador, precisamos dar a garantia que o queijo de leite cru é seguro. A Cidasc quer fazer isso com análise, com amostras que nós escolhermos. Eu não sou contra, mas tenho que ser convencido microbiologicamente e fisico-quimicamente de que esse produto não vai causar nenhum problema para o consumidor. O Staphylococcus é uma bactéria que tem uma toxina que pode causar lesão neurológica. Vamos supor que isso acontece com o seu filho. Você vai cobrar de quem? De quem deu o registro.
Quem tem medo de leite cru?
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Afinal, comer queijo de leite cru é perigoso? Conforme explica o professor do departamento de Ciência e Tecnologia de Alimentos da UFSC Juliano Lindner, o leite não pasteurizado está sujeito à proliferação de bactérias, inclusive patogênicas. São microrganismos potencialmente danosos para a saúde humana, como a Listeria monocytogenes ou o Staphylococcus aureus, que podem causar infecção e intoxicação alimentares, por exemplo. Por isso, a pasteurização, desenvolvida em meados do século 19, foi um marco no combate a várias doenças transmitidas pelo leite e seus derivados como brucelose e tuberculose.
Comer o queijo de leite cru, no entanto, é diferente de beber o leite. Se produzido de forma adequada, diz o professor, cumprindo pré-requisitos de higiene e processos corretos, as bactérias ácido-lácticas que serão dominantes na maturação evitam que as variedades prejudiciais se multipliquem e atinjam níveis não seguros para consumo. Essas bactérias boas têm outra função: são as responsáveis pela variedade de sabores, texturas e odores da iguaria pelo mundo.
De acordo com a professora da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Célia Ferreira, na versão industrializada, feita com a pasteurização, são mortas as bactérias boas e ruins, sobrando algumas que resistem ao processo. Para que microrganismos patogênicos não se multipliquem, o queijo industrializado precisa ser resfriado, diferentemente do artesanal, que conta com as próprias defesas.
Parte da polêmica entre órgãos fiscalizadores e defensores dos queijos artesanais se dá pela regra do tempo de maturação. Muitos desses órgãos entendem que são necessários ao menos 60 dias de maturação para que não reste um nível inseguro de bactérias patogênicas. Em nível estadual, a única lei que fala expressamente em queijo de leite cru é a do serrano, que exige mais de 60 dias de maturação, e desde que o produto seja feito na serra catarinense.
Os pesquisadores discordam que deva existir um prazo fixado para todos os tipos do alimento. A professora da Federal de Viçosa afirma ter testado variedades mineiras que atingiram níveis seguros para consumo em 17 ou 22 dias. Lindner diz que é preciso avaliar caso a caso, e que o estudo de risco é que vai dizer o tempo certo.
O entrevero em torno dos queijos de leite cru não é exclusividade brasileira. Nos Estados Unidos, produtores têm constantes embates constantes com a FDA (Food and Drug Administration), um equivalente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que ainda exige o mínimo de 60 dias de maturação, mas já dá sinais de relaxamento dessa regra. Na Europa, a legislação é bastante favorável ao produto. Mesmo assim, em 2015, ninguém menos que o Príncipe Charles saiu em defesa dos queijos artesanais: “Em um mundo sem micróbios e progressivamente modificado geneticamente, que futuro há para o velho Gruyére, o Fourme d’Ambert ou o Pont L’Evoque?”, declarou ao receber uma comenda em Paris.
Por aqui, a polêmica entre órgãos fiscalizadores e pequenos produtores ainda deve render. Mas há quem acredite não só é possível como é desejável que se alie questão sanitária e produção artesanal:
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— Eu acho que teremos um boom do queijo artesanal, mais ou menos como aconteceu com a cerveja. Hoje, fazer queijo é coisa de velho, que não interessa os mais novos, mas se a lei for aprovada, isso muda. – acredita o engenheiro agrônomo e extensionista rural da Epagri Remy Simão.
Aprovado em novembro na Comissão de Constituição e Justiça, o PL está parado na de Finanças porque o deputado Gabriel Ribeiro (PSD) pediu vista. Ainda precisará passar pela Comissão de Agricultura antes de ir a plenário. A expectativa de João Amin é de que o texto seja submetido à votação dos parlamentares ainda este ano.
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