Quatro anos após a greve que parou o país, caminhoneiros em Santa Catarina relatam viver hoje uma situação ainda pior do que aquela que mobilizou a paralisação em maio de 2018 e veem desestimulo à profissão. O Estado é hoje o que tem maior percentual de transportadoras do ramo com vagas à espera de candidatos.
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No país, 44,6% de 464 empresas de transporte rodoviário de cargas (TRC) entrevistadas por um estudo recém-publicado pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), que fez um perfil empresarial do setor, dizem ter vagas para motoristas.
A maior parte das empresas com disponibilidade para contratação (17,4%) tem matriz sediada em Santa Catarina, importante Estado para o setor. É o terceiro com maior número de matrizes (12,9%) e o quarto em quantidade de filiais (24,8%).
Quem tenta contratar costuma colocar o pouco tempo de experiência dos candidatos como a principal dificuldade (46,1%), junto com a falta de treinamento específico para o setor (31,5%) e de qualificação em outras áreas que não a do transporte (30,8%).
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Além disso, 20% das próprias empresas, uma parcela significativa, conforme escreve a CNT, relatam que um dos principais entraves para as contratações hoje é a baixa atratividade da profissão, o que caminhoneiros reforçam ao Diário Catarinense.
Com 12 anos de profissão, Deliandro Valasco, de 40 anos, diz que a situação só piorou desde a greve, com caminhoneiros sujeitos a sacríficios e custos cada vez maiores, mas desacompanhados de ganhos em proporção parecida.
— Hoje é difícil achar quem queira estar na profissão. O nosso salário, do profissional de estrada, está muito defasado. Não acompanhou a inflação — diz Valasco, ao relatar ter vários colegas que já até desistiram da vida na estrada.
Também motorista e moradora de Santa Catarina, Dilce Neris, de 47 anos, afirma concordar, mas é mais enfática que o colega de profissão ao avaliar o cenário atual para os caminhoneiros: é o pior que já viu em seus 18 anos de volante.
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— Nosso salário continua o mesmo de cinco anos atrás. Só o custo de vida na estrada que aumentou muito. Não sobra nada — afirma a caminhoneira, ao também reconhecer a grande oferta de vagas entre empresas.
Na pesquisa da CNT, a faixa salarial mais adotada por empresários no país (32,8%) vai de R$ 2.201 a R$ 3.300. Na Região Sul, ao menos 55% dizem pagar mais do que isso.
Já o Ministério do Trabalho diz que a remuneração média da profissão no Estado estava em R$ 2.621,53 há dois anos, dado mais recente, valor só 3,6% maior do que o salário médio para motoristas de caminhão registrado no ano da greve (R$ 2.530,38).
Ainda segundo a pasta, a remuneração média das 1.560 vagas para a função que foram oferecidas no Estado no ano passado pelo Sistema Nacional de Emprego (Sine) estava em R$ 2.470,30. Apenas 141 delas (9%) foram preenchidas.
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Em contrapartida, a inflação oficial no país, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), subiu 13,10% entre o início de 2018 e o fim de 2020. E ela ainda segue acumulando: do mês em que a greve teve início até abril deste ano, foram 28,64%.
Entre os custos na estrada, os caminhoneiros destacam o aumento no diesel, que já havia sido o estopim da greve de 2018 e configura também a dificuldade mais lembrada (82,3%) pelo empresariado à CNT.
No último dia 21 de maio, o litro do combustível chegou a atingir valor nominal recorde, com preço médio de R$ 6,943 identificado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que faz pesquisa semanal desde 2004.
A alta impulsiona ainda uma subida geral na economia, já que quase 65% das cargas do país, conforme lembra a CNT, passam pelas carrocerias dos caminhões. O cenário de crise ainda intensifica velhos problemas da estrada para caminhoneiros.
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Dilce cita a necessidade de ficar mais tempo em viagem e diz ter colegas que chegam a passar três meses sem poder voltar pra casa.
Já Deliandro destaca a falta de infraestrutura para atender trabalhadores nas estradas, que são submetidos a paradas obrigatórias, sob fiscalização da Polícia Rodoviária Federal (PRF), mas não têm necessariamente onde se abrigar.
— Se você parar em um posto e não abastecer, você é expulso. Não pode parar ao lado de um rodovia para descansar ou dormir. Não tem um lugar decente para parar um caminhão, não existe amparo algum — afirma o caminhoneiro.
No pátio de um posto em Biguaçu, na Grande Florianópolis, a reportagem encontrou uma nova dupla de caminhoneiros que reforçou o relato.
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Rubisnei Galoni, de 41 anos, e Isaque Santos, de 22, viajam a partir do Rio Grande do Sul e cruzam Santa Catarina rotineiramente. Sempre param no mesmo local, mas só garantem o descanso após uma abastecida de cerca de 200 litros de diesel.
O primeiro deles explica que, mesmo em ambientes assim, com circulação em tese controlada, até o sono tem sido privado, devido à insegurança crescente na estrada.
— Estão furtando até peças de caminhão. O caminhoneiro dorme e só vai perceber quando tenta dar partida — diz Rubisnei, ao citar cada vez mais comum furto de módulos eletrônicos, um processador que controla diversos sistemas do veículo.

Na pesquisa da CNT, 62,5% das empresas afirmam já terem sido sujeitas a roubos de cargas. Entre elas, mais da metade (51,7%) sofreu com o crime nos últimos dois anos.
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Os quatro caminhoneiros ouvidos, que trabalham para empresas, dizem que a situação é ainda pior para motoristas independentes, análise com a qual concorda o presidente da Federação dos Caminhoneiros Autônomos e Transportadores Rodoviários Autônomos de Bens do Estado de Santa Catarina (Fecam-SC), Francisco Biazotto.
Ele diz que os caminhoneiros autônomos costumam ter maior dificuldade em acessar veículos mais novos e acabam arcando também com maiores custos de manutenção, como a necessidade de trocar pneus, cada vez mais caros.
— Não tenha dúvida: os caminhoneiros estão se deteriorando e muitos deles vão quebrar — diz o líder da entidade que, no Estado, representa cerca de 44 mil profissionais, entre autônomos e microempreendedores individuais (MEIs).
O presidente da Fecam-SC diz ainda já acompanhar dois movimentos em meio à crise atual: de autonômos que precisaram passar a trabalhar para empresas e de famílias que perderam a tradição de formar caminhoneiros.
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Na dele, por exemplo, oito de nove irmãos foram caminhoneiros, proporção que não se manteve nas gerações seguintes. Ele viu os dois filhos seguirem outras profissões. Já um irmão em Santos, no litoral paulista, tem hoje dois caminhões parados, mas sobrinho algum quis assumir.
— A descendência está deixando totalmente esse ramo de lado, porque é uma verdadeira escravidão ser caminhoneiro. Tem empresas aí em que o camarada fica fora de casa por meses. E tem caminhoneiros que se obrigam a ficar muito tempo fora, na rota de frete, porque ele não consegue faturar o bastante para sobreviver — desabafa.
Dados do Departamento Estadual de Trânsito do Estado de Santa Catarina (Detran-SC) sinalizam essa queda de interesse de novos caminhoneiros.
De 2018 ao ano passado, o número de carteiras nacionais de habilitação (CNHs) em categorias dedicadas à caminhões (AC, AE, C e E) caiu 16,3% no Estado — de cerca de 354 para 296 mil. A título de comparação, a quantidade de CNHs em vigor indicadas para motos e carros (AB, A e B) subiu 9,5% — de 3,02 para 3,31 milhões.
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Biazotto diz que a melhor herança da greve foi a tabela do frete. Ele pondera, no entanto, que ela só é o bastante para o caminhoneiro se manter e que ainda carece de maior fiscalização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) — o órgão afirmou, à reportagem, que realiza operações rotineiras e que agora intensifica os trabalhos nas empresas embarcadoras para garantir o cumprimento dela.
Entre empresários, no entanto, apenas 5,4% acham que a tabela tem sido cumprida integralmente pelas empresas de TRC, segundo a pesquisa da CNT, apesar de uma maioria deles se dizer favorável à iniciativa (44,2%).
Ainda entre o empresariado, 57,1% afirmam que o principal indicador para mexer hoje no valor do frete é a variação do preço do diesel. Isso foi visto na prática no início do mês, quando o setor indicou aumento de até 5,4% no Estado no mesmo dia em que a Petrobras subiu o preço do combustível nas refinarias.
A estatal adota desde 2016 uma política de paridade internacional, para atrelar o valor dos combustíveis ao mercado internacional, o que hoje desagrada 87,5% do empresariado, segundo a CNT.
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O presidente Jair Bolsonaro (PL) reiterou, recentemente, que não irá alterar o modelo adotado pelo governo Michel Temer (MDB), apesar das trocas de comando e da pressão sobre a Petrobras, devido ao desgaste eleitoral causado pela alta de preços.
Solidário à greve em 2018, o presidente já não é agora tratado como unanimidade pelo setor, principalmente pelo que indicam líderes que despontaram do movimento há quatro anos, caso do caminhoneiro Wallace Landim, o Chorão.
Ele fez campanha para Bolsonaro naquele ano e chegou a ser agraciado pelo presidente em 2019 com a medalha Mérito Mauá, maior honraria do Ministério da Infraestrutura, pela contribuição ao setor de transportes. Hoje, Landim faz oposição ao governo à frente da Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores (Abrava).
— O que nós queremos saber, presidente, é se realmente vai cair o preço dos combustíveis. A categoria já não aguenta mais — disse, em vídeo publicado no último 24 de maio, dia seguinte à demissão de mais um presidente da Petrobras.
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— Precisamos que o senhor chame a responsabilidade, chame o conselho da Petrobras e faça alguma coisa. E se não vir uma redução, você pode ter certeza de que esse país vai parar novamente — afirmou.
Todos os caminhoneiros ouvidos pela reportagem mostram descrença, no entanto, em uma nova greve e em lideranças políticas.
Dilce, a mais experiente deles, diz ser favorável a mudanças, mas que uma paralisação prejudicaria muitas pessoas. Já o mais novo, Isaque, afirma achar que os acenos à categoria, independentemente do espectro político, se resumem a interesses eleitorais.
Ele diz ter herdado a profissão do pai, Adão, que era motorista de ônibus e faleceu há dois anos, e afirma não contar com grandes mudanças para seguir na estrada.
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— A gente faz por amor mesmo. Se fosse só pelo trabalho, não compensaria — diz ele.
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