O DJ Charly pega o microfone e fala que a primeira mulher que subir ao palco e provar – “com o RG, hein?” – que se chama Karen ganhará R$ 50. Todo mundo se alvoroça porque sabe o que virá em seguida. “Me deixou galudo e eu fiquei apaixonado”, irrompe das caixas de som o hit do MC Fabinho da Osk, com quase 3 milhões de visualizações no YouTube em dois meses e outras tantas audições por rolês não contabilizados. Pélvis se movem para a frente e para trás, acentuando os movimentos quando a música chega ao verso que a batiza, cantado em uníssono: Toma Karen Toma. Passa da meia-noite e o baile funk no Conselho Comunitário da Fazenda Rio Tavares, no sul da Ilha, em Florianópolis, está apenas começando a esquentar.

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Ao longo da magrudada de domingo, o salão revestido de azulejos brancos, que nos dias úteis abriga atividades como aulas de ginástica, será invadido por jovens se entregando às batidas fortes, letras desbocadas e graves abissais que caracterizam o ritmo. Elas vestem justíssimas bermudas jeans, blusas com pouco pano e sandálias. Uma minoria prefere minivestidos, microssaias ou qualquer peça diminuta que revele demais com uma simples inclinação. Neles, o que importa é a camiseta, sempre com a grife estampada no peito ou de times europeus (a 10 usada por Neymar no Paris Saint-Germain impera). Alguns incrementam o visual com relógio de pulseira colorida, correntes no pescoço e cabelo com cortes chavosos.

Quem não pagou menos pelo ingresso antecipado pode comprá-los na bilheteria a R$ 35 (masculino) e R$ 20. Seis seguranças revistam o pessoal na entrada e zelam para que ninguém se exalte demais nas próximas horas. A iluminação se restringe ao girar intermitente de cinco spots de cores diversas, instalados em uma estrutura metálica na extremidade onde ficam os DJs. Decoração, zero. Apesar da péssima acústica do local, o volume é tão alto que o bumbo eletrônico faz o corpo vibrar. É o que basta para rodinhas se formarem na pista, não raro ao redor de uma garrafa de uísque e uma pet de energético no chão, derretendo o gelo em copos que circulam de boca em boca.

As expectativas do produtor Leonardo Duarte Vieira parecem estar sendo cumpridas, mas ele só conseguirá relaxar depois que acabar. Walkie-talkie na mão, o rapaz de 18 anos é o responsável pelo baile. Filho de faxineira e contador, Leo, como se identifica, cresceu ouvindo o gênero musical que tenta transformar em negócio. Para comemorar a maioridade, alugou uma casa com piscina no bairro onde mora com a mãe, o Morro das Pedras, ali perto, e promoveu um after (festas que começam na madrugada, quando as outras estão terminando) regado a funk. A dona do imóvel levou um susto com a gentarada que apareceu. O futuro agitador vislumbrou uma oportunidade.

– Convidei DJs e MCs que conhecia e criei o Baile do Antares. No primeiro, em dezembro do ano passado, aqui mesmo, vieram mais de 700 pessoas — diz.

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Nesta segunda edição, o cartaz anuncia quatro DJs e quatro MCs – com destaque para a atração nacional MC Gury, paulista que estourou em Florianópolis com faixas como Sentadão e Vida Loka. Se depender da animação de Jessica Soares haverá uma terceira, quarta e por aí vai. Ela interrompe o requebrado com uma amiga e um cara somente para dizer que mora no Monte Cristo (na parte continental da Capital), tem 27 anos, é mãe de um filho de nove e está desempregada.

– Adoro funk desde que me entendo por gente. Meu sonho é ser dançarina – completa, voltando para a pista sem responder qual é sua profissão.

EM UM SÁBADO DE JUNHO DE 2017, SEGUNDO O CENTRO DE OPERAÇÕES da Polícia Militar (Copom), um Sandero furou a blitz em uma rua no Morro da Queimada, acesso ao Morro do Mocotó, um dos mais centrais da cidade. Houve perseguição, tiroteio, um soldado baleado na perna, chegada de reforços, nova troca de tiros. A ação policial não conseguiu capturar os passageiros do carro, suspeitos de estarem envolvidos com o tráfico de drogas. Azar das cerca de 400 pessoas que suavam ao som do funk no centro comunitário próximo ao local do tumulto, que tiveram que sair correndo do fogo cruzado. A partir de então os bailes não seriam mais os mesmos.

– Depois disso deu uma caída, a turma ficou mais cabreira. Mas continuam rolando, sem muita divulgação para não chamar a atenção – afirma o produtor Japa, apelido de Antonio Borges, 21 anos, três dos quais na função.

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Divertir-se no “Moca” (como o Mocotó é chamado pelos íntimos) ou em outra comunidade pode ser uma experiência tensa para forasteiros. O maior monitoramento da polícia aumentou a desconfiança dos frequentadores. Qualquer estranho passou a ser um P2 (agente à paisana) em potencial. A situação abriu espaço para se consolidarem opções em bairros menos visados, que reagem com indiferença a forasteiros. De acordo com Japa, além do Rio Tavares, há noites funk com regularidade em clubes na Vargem Pequena, Lagoa da Conceição (ambos na Ilha), Capoeiras (continente) e Serraria (em São José, na Grande Florianópolis). É aí que entram seus serviços.

Paraense de Quatipuru, ele se mudou para a Capital com os pais em 2006. Na adolescência, participava das batalhas de rimas no Largo da Alfândega. Logo percebeu que não iria longe no rap porque “tinha a voz muito feia” e se bandeou para o pancadão carioca. Não com a pretensão de virar artista, e sim para atuar nos bastidores. Conheceu o meio, pegou contatos, aprendeu a conversar com clientes e meteu a cara. Produziu seu primeiro baile em abril do ano passado, no Morro do 25. Para realizá-lo, seguiu a regra obedecida por todos – de Michael Jackson ao mais reles MC – que desejam promover algo que altere a rotina de uma comunidade:

– Pedi autorização no morro. Como eu já tinha morado lá, foi tranquilo. Deram apoio total, queriam que fosse um baile de paz – lembra.

Segundo Japa, policiais apareceram às 6h30min e deram fim ao baile. A noite não acabou do jeito esperado, mas mostrou a ele que era com isso que gostaria de ganhar a vida. Após transitar por algumas produtoras, ele montou a GNTZ, que divide com dois sócios mantidos no anonimato. Com exceção de Gury, os DJs e MCs escalados para o Baile do Antares integram o cast da agência. Um deles, Marquinho, 18 anos, carrega na altura da costela e na perna cicatrizes que, jura, foram provocadas por bala de borracha naquele amanhecer no 25, quando também estreava.

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O ex-componente da bateria da escola de samba Coloninha descobriu a vocação para DJ em festas nas própria comunidade. Autodidata, está finalizando as batidas de uma música de MC Gabrielzinho, colega da GNTZ. Abre o programa Acid no notebook e mostra Ela É Gata Bacana. Gravada com instrumentos “de verdade”, soa bem diferente – em todos os sentidos – do que o repertório que ele costuma tocar. É uma aposta da produtora, porque o “funk muda muito rápido”. Melodiosa e suave, a faixa vai na direção oposta da linha que rege o cenário atual.

 FLORIANÓPOLIS, SC, BRASIL - 21/02/2018Especial sobre a cena do funk em Florianópolis. Na foto, Petherson Alexandre Soares Vieira, o MC Peth
MC Peth Foto: Marco Favero / Diário Catarinense

QUE DO ESTILO DESCENDENTE DO SOUL E ELEVADO AO ESTADO DA ARTE por James Brown a trilha sonora dos bailes herdou apenas o nome, tirado de uma gíria negra da década de 1960 para mau cheiro, não é novidade para ninguém. Com o tempo, o ritmo que recebeu o complemento de “carioca” com o estouro dos melôs compostos por DJ Marlboro sobre bases sintéticas do electro e do Miami Bass nos subúrbios do Rio de Janeiro nos anos 1980 se ramificou. Virou melody, tornou-se charm, desceu para o asfalto e se diluiu no pop que, em épocas distintas, fez as classes A e B saudarem Latino, Anitta, Ludmilla, Nego do Borel e quejandos. Mas a metamorfose não parou nisso.

O funk que vigora hoje deriva de duas vertentes. O “proibidão” enaltece o crime, com letras que listam armas para narrar confrontos com a polícia. O “ostentação” glorifica um lifestyle repleto de citações a marcas e códigos de riqueza idealizado pelos funkeiros ascendem. O encontro da sensação de poder (o maior afrodisíaco, como definiu o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger) com a exibição de status (mulher gosta é de dinheiro, reza a máxima de parachoque de caminhão) não poderia resultar em outra coisa que não sexo.

– Agora o que domina é o funk putaria. Quanto mais esculachado, mais a galera gosta – atesta DJ Charly.

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Existe ainda o funk consciente, que denuncia o preconceito e retrata a batalha do dia a dia. Esse não emplaca nos bailes. O discurso político-social perde de goleada para as peripécias falocêntricas e exaltações ao órgão reprodutor feminino. Em tempos de empoderamento das mulheres e igualdade de direitos, as fãs não estão nem aí para a objetificação a que são reduzidas nas letras. Talvez porque, da mesma forma que as descrições explícitas provoquem mais riso do que aticem a libido, as rimas chulas não devam ser levadas a sério. Diante da receptividade delas a tanta sacanagem, não seriam eles que iriam se incomodar. Muito menos MC Peth, outro filiado à GNTZ.

Petherson Alexandre Soares Vieira tem 22 anos e mora com o pai e a madrasta no Mocotó. Aos 11, influenciado pelos MCs Lon, Magrinho e Daleste – três ícones da ostentação, o último assassinado com dois tiros durante um show em Campinas (SP), em 2013 –, rendeu-se ao funk. Concluiu o ensino médio, serviu o Exército e, desde que saiu da caserna, escreve versos “inspirados na realidade”. Os títulos sugerem um cotidiano no mínimo peculiar: Mandelão da Gang, que ressignifica a alcunha do líder sul-africano (símbolo da luta contra o racismo) e a autoexplicativa Escolinha do Prazer. Ele sonha com o dia que ouvir alguém na rua cantando suas músicas.

– Aí eu quero falar para o meu pai que é para ele ter orgulho de mim, porque eu consegui.

 FLORIANÓPOLIS, SC, BRASIL - 17/02/2018Baile funk na comunidade
MC Dani Foto: Marco Favero / Diário Catarinense

LANÇADA EM 2013, AS MINA PIRA FEZ MC DANI ACREDITAR QUE HAVIA tirado a sorte grande. Turnês substituíram a lida na oficina de lataria e pintura. Contratantes lhe perguntavam quais comidas e bebidas iria querer no camarim. Tchutchucas se atiravam no seu colo. Até de rodas de funk no Rio de Janeiro – honraria para a qual só os considerados feras são convidados – participou. Baixada a febre, não conseguiu repetir o sucesso, embora nunca tenha parado de se apresentar em bailes. Vacinado, Daniel Cristiano dos Passos não conta mais somente com a loteria da fama para proporcionar conforto à mulher e aos dois filhos.

Ele se aventurou na música por insistência de Paulista, um sujeito já falecido que organizava festas movidas a batidões na extinta boate New Time, em Santo Amaro da Imperatriz, na Grande Florianópolis. “Se liga, os caras estão começando a ganhar dinheiro com isso”, instigava-o. Não custaria nada tentar rabiscar algumas palavras no papel para ver se funcionava. Na pior das hipóteses, permaneceria desamassando carros e fazendo bicos como vigilante. Quando o amigo o ouviu cantando à capela aquele que seria seu único hit, pirou mais do que as moças representadas na letra.

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A bordo do carro de Paulista – “um Monza 99 caindo aos pedaços”, ri Dani – os dois pegaram a estrada rumo à meca do funk. Em solo carioca, o aspirante a artista que jamais havia pisado em um estúdio teve de gravar 22 vezes até obter um resultado satisfatório. No terceiro dia, a música já bombava nos bailes da renomada Furacão 2000. De volta a Florianópolis, a estreia levou 8 mil pessoas na casa noturna da qual o mecenas era parceiro. Curitiba, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, interior paulista e catarinense requisitavam o MC para shows. 

– Os vizinhos se surpreendiam quando descobriam que a música era minha. Nos bailes, me cumprimentavam sem saber que eu era o autor – afirma, sentado ao entardecer no alto da escadaria no final da rua onde mora, no mesmo Monte Cristo onde nasceu e vive há 32 anos.

Ele é o segundo de seis irmãos, todos criados pela mãe, faxineira. O mais velho, metido com “coisa errada”, foi morto a poucas quadras de distância dali, na comunidade Chico Mendes, dentro da “Faixa de Gaza” – área comparada pelos policiais, devido à violência, ao conturbado pedaço de território palestino encravado em Israel. Dani sempre procurou andar na direção contrária: completou o ensino médio, jogou futebol nas categorias de base do Figueirense, foi açougueiro e repositor em um supermercado.

A grana que ganhou com música investiu em uma casa de dois andares para a família. Para engordar a renda, abriu um bar e distribuidora de bebidas. Atua ainda como educador social do projeto Procurando Caminhos, Resgatando Vidas, da ONG Escrava Anastácia. Nas palestras, aconselha a molecada sobre drogas e, ora se não, funk. “Não façam tudo o que dizem as letras” é a principal orientação. Em 2016, Dani foi um dos 28 agraciados pela Câmara de Florianópolis com a medalha Joana de Gusmão, concedida àqueles que se destacam pelo trabalho voluntário.

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Aos fins de semana, porém, o lado MC toma conta. São 4h de um sábado e ele está rimando em uma festa cujo convite havia sido repassado a uma seleta lista de contatos via WhatsApp. “Hoje tem aquele flux gostosinho no azeite”, prometia a mensagem. “Proibido entrar com bebidas e armas, se brigar vai ser jogado na piscina e vai embora molhado.” O silêncio e a discrição reinam no endereço marcado, que Dani pede para não revelar em que comunidade se localiza porque “o pessoal pode não estar com a documentação em dia”.

O acesso é pela garagem: um rapaz abre uma das folhas da porta, uma mulher cobra o ingresso (R$ 30 e R$ 5) e ele volta a fechá-la. Para sair, só se for para ir embora, não tem essa de ficar dando bandeira na calçada. Outra porta isola o barulho vindo dos fundos, gerado pela mistura do som embolado da música com o vozerio das pouco mais de 100 pessoas que se distribuem pelo ambiente. A área coberta abriga o bar, improvisado no canto da churrasqueira, e o espaço para os DJs e MCs, delimitado por correntes. Ao ar livre, o quintal e, um nível acima, o deque com a piscina iluminada.

O contexto faz a imaginação fervilhar. A realidade mostra a juventude bebendo menos do que se estivesse em um show de sertanejo universitário, dançando de forma menos lasciva do que estivesse em algum clube de Jurerê Internacional (aliás, locação do clipe de As Mina Pira) e beijando menos do que se estivesse em uma micareta. Nem um mergulho! Ninguém quer ser fotografado, que dirá abordado. Por 20 minutos, Dani emenda um refrão no outro, muitos dos quais já executados pelos DJs que o antecederam – um detalhe completamente irrelevante no funk. Por show maiores, com seis músicas próprias “mais as que estão bombando”, ele cobra de R$ 1 mil a R$ 2 mil. Se pá, leva também dançarinas, as “danizetes”.

 FLORIANÓPOLIS, SC, BRASIL - 17/02/2018Baile funk no Rio Tavares
Baile do Antares Foto: Marco Favero / Diário Catarinense

EM FEVEREIRO, O COMEDIANTE WHINDERSSON NUNES PERDEU O POSTO de detentor do maior canal de YouTube do Brasil em número de assinantes. Com 29 milhões de seguidores, o novo líder é KondZilla, dono da produtora e gravadora homônimas. De, adivinhe, funk. Somados, seus clipes têm mais de 13 bilhões de visualizações. Superstars MCs como Kevinho e Guimê são seus fregueses. Seu faturamento ultrapassa R$ 1 milhão por mês. É a grande referência, tanto em linguagem quanto em dimensão, para toda a cadeia produtiva que mira essa multidão de consumidores.

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A florianopolitana GNTZ cobiça as marcas alcançadas por KondZilla, mas primeiro precisa chegar aos patamares de MC Dani. De cada R$ 200 que entram na produtora, 50% vão para o MC, 25% para o DJ e 25% ficam na empresa. Japa trabalha no restaurante do pai, no Estreito. O pai de Marquinho emprega o filho e Peth em sua lanchonete, no Centro. O único que vive de música é Charly. Aos 26 anos, 10 de funk, há três Charles Almeida deixou de ser ajudante de cozinha em um restaurante para se dedicar exclusivamente à discotecagem. Toca em bailes, casamentos, formaturas, festas de 15 anos.

– Boto um som mais light, mas sempre rola um funkzinho – diz.

No circuito dos bailes, é comum Charly fazer dois, três locais por noite. Depois do Antares, iria correndo para mais um set em outra comunidade. Até a hora que ele foi embora do Rio Tavares, não havia aparecido nenhuma Karen.