A partir da divulgação do caso da jovem do Rio de Janeiro, as mulheres brasileiras levantaram-se em massa para denunciar a existência de uma “cultura do estupro” em nossa sociedade. Ela identificam que determinada mentalidade e certas formas de comportamento presentes no cotidiano são a base dos episódios de violência extrema. Na entrevista a seguir, Maria Fernanda Salaberry, do Coletivo de Mulheres da Ufrgs e da organização da Marcha das Vadias, diz como essa cultura permeia a realidade nacional.
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Que elementos estão presentes no dia a dia que revelam a existência de uma cultura do estupro na sociedade brasileira?
A cultura do estupro é a questão da normalização do acesso ao corpo da mulher. Isso se dá nas piadas e no convívio cotidiano, quando os colegas beliscam, quando têm um acesso meio que naturalizado ao corpo de outra pessoa por ela ser uma mulher. Ao mesmo tempo, somos construídos para enxergar o estupro como um acontecimento muito distante, em que o estuprador é alguém que agarra a mulher na rua e a arrasta para um beco escuro, enquanto a piada está “de boas”, porque a piada não gera estupro, porque o cara que faz piada é o amigo, porque a beliscada está tranquila. Então, na cultura do estupro, há essa dissociação.
Você vê a cultura do estupro relacionada com atos que no cotidiano não visto como inocentes?
Sim, como inocentes, inclusive no ambiente de trabalho. Há essa questão da brincadeira com o corpo da mulher e do acesso ao corpo da mulher, em que se diz que se você está incomodada com a piadinha então você tem um problema. Na verdade, isso dá aval para uma série de agressões. Teve um professor da PUCRS , por exemplo, que disse em sala de aula que as leis eram como as mulheres, feitas para ser violadas (o episódio, envolvendo o docente de Direito Fábio Melo de Azambuja, ocorreu em abril de 2015 e teve bastante repercussão). É esse tipo de comentário, que às vezes passa despercebido, que gera a ação do estupro.
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O assédio mais direto, como, por exemplo, a queixa que as mulheres fazem de que são tocadas nos ônibus, seria o patamar seguinte?
Parece que são coisas dissociadas, mas quando a gente fala de cultura do estupro, o que queremos dizer é que todos esses processos estão associados e que a brincadeira gera a agressão física mais leve, que é aquela no ônibus. Agora São Paulo e Rio de Janeiro tem vagões no metro exclusivos para mulheres, e esses vagões também são resultado da cultura do estupro. A gente aprisiona a vítima, separa a vítima do resto da sociedade, porque é normal o agressor agir daquele jeito. Em vez de as instituições resolverem o problema do agressor, separamos, apartamos as vítimas, porque o problema não é o agressor, é a vítima.
O discurso de culpabilização da mulher pelo estupro é parte dessa cultura?
Sim. Nas redes sociais, ao mesmo tempo em que tivemos nos últimos dias uma enxurrada de declarações de solidariedade à menina, a gente também teve uma enxurrada de postagens do tipo: “ah, mas estava bêbada, estava no baile, estava não sei aonde, usava tal roupa”. Como se as mulheres de burca não fossem estupradas. Existe essa lógica da culpabilização: “alguma coisa ela fez para merecer isso, porque afinal de contas os homens não estupram mulheres sem motivo”. Quando a gente fala de cultura de estupro está dizendo que todos os homens são educados para isso, e alguns homens se incomodam, se ofendem. O que tomou conta da internet foi os homens saindo em defesa dos outros homens que não são estupradores e isso virou uma grande discussão. O que a gente está dizendo é que não existe um homem mágico, como o Papai Noel, que consegue visitar todas as casas do mundo numa noite, que sai por aí agredindo um terço das mulheres. São vários homens, é uma grande parte dos homens que faz isso.
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Qual seria o papel que o homem que repudia essa cultura poderia desempenhar
Exista uma lógica de conivência, uma coisa que a gente brinca que é a “broderagem”. Houve um tempo atrás uma movimentação dos homens querendo ocupar os espaços feministas. Os homens não têm de estar nos espaços feministas, têm de estar nos bares, por exemplo, e se colocar numa postura contrária ao colega quando o colega faz uma comentário machista. Quando o colega dá uma cantada na rua. Quando o colega faz um comentário dizendo que a chefe é mal humorada porque foi mal comida e precisa de alguém que faça sexo com ela. Essa é a posição que os homens que são contra o assédio têm de ter. E uma postura de autocrítica. Porque nem sempre o agressor se dá conta da agressão. Ele diz: “nunca bati”. Mas pode ser que tenha gritado com a colega de trabalho em um tom de voz ameaçador, e só tenha feito isso porque ela era uma mulher e isso a tenha coibido. Tem de ter uma postura de autocrítica e de enfrentamento nos espaços onde a mulher não tem acesso ao diálogo.
Quando se fala de cultura do estupro não se está falando só da violência em si, mas de todo o pensamento que pode levar à violência?
A cultura do estupro nada mais é do que a cultura de que a mulher não é um sujeito e, por não ser um sujeito, por ser um objeto, pode ser manuseada ao belprazer do homem. E aí você tem a elaboração disso em situações mais primárias, da agressão verbal, do acesso ao corpo, até situações mais limítrofes como essa de um estupro coletivo envolvendo 30 homens e filmado.
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O fato de ter sido filmado e colocado na internet significa que, para essas pessoas, era um ato normal, do qual não vão se envergonhar?
Exatamente. Principalmente porque a recriminação é muito baixa. Nesta semana atendemos o caso de uma menina que teve de se mudar de Minas Gerais para Porto Alegre, fugindo do namorado, que tentou matá-la e foi preso em flagrante. A polícia teve de invadir o apartamento para tirá-lo de cima dela. Ele fraturou 16 ossos da menina. E a Justiça acabou de absolver o cara. Não pediu nem cesta básica.
Nesse caso do Rio, ao que parece um ex-namorado também estaria envolvido. Quando um ex-namorado usa um estupro como uma espécie de punição, isso indica que ele se vê como proprietário da mulher?
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Sempre que existe estupro, é como se o homem julgasse que é proprietário. É como pegar um copo em casa e jogar no chão. É seu, você pode quebrar. É esse o sentimento. É essa a relação que os homens têm com o corpo das mulheres. É a mesma relação que os senhores de escravos tinham com os escravos. A relação psicológica e social que existe é a mesma.