*Por Julia Moskin

Como muitas crianças de 13 anos, Daniella Senior adorava assar e pensou que poderia se tornar uma confeiteira. Mas, ao contrário da maioria, ela já tinha seis funcionários.

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Senior começou por conta própria, cobrando e atendendo a pedidos de doces em miniatura enquanto crescia em Santo Domingo, na República Dominicana. “Eu acordava às quatro da manhã todos os dias antes da escola para assar”, disse ela. Sua mãe, que lhe emprestou US$ 200 para que iniciasse o projeto, fez com que ela buscasse ajuda profissional.

Senior passou a frequentar o Instituto Culinário dos Estados Unidos, foi orientada pelo chef José Andrés e agora é dona de cinco bares e de restaurantes na área de Washington, D.C., e membro do conselho da associação Mulheres Chefs e Restaurateurs.

Com a disseminação do coronavírus por todo o nordeste dos EUA nesta primavera boreal, fechando milhares de restaurantes, Senior, de 31 anos, voltou a assar. Com a confeiteira de Washington Paola Velez (que também tem raízes na República Dominicana), ela adaptou suas cozinhas e seus funcionários remanescentes para produzir rosquinhas e chamou o projeto de Doña Dona.

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Elas criaram rosquinhas com floreios dominicanos de tamarindo, abacaxi, goiaba e merengue, e as venderam on-line, fazendo as entregas na calçada uma vez por semana. Em maio, o esforço arrecadou US$ 6 mil, o suficiente para pagar os padeiros e ainda doar US$ 1.000 ao Ayuda, um grupo sem fins lucrativos que fornece ajuda a imigrantes de baixa renda.

Mas em junho, quando o assassinato de George Floyd e o debate sobre a justiça racial dominaram as notícias dos Estados Unidos, Velez, de 29 anos, disse ter notado que a escala da venda tradicional de assados não daria conta de atender a causa. “Isso vai fazer com que nos sintamos bem, mas não vai provocar nenhuma mudança real. Tivemos de pensar grande.”

E ela pensou grande. Em meados de julho, a Bakers Against Racism, uma ação global de venda de assados on-line que ela iniciou ao lado de dois outros chefs, já havia arrecadado quase US$ 1,9 milhão para a causa do Black Lives Matter e para centenas de outros grupos que trabalham por justiça racial.

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(Foto: Jared Soares / The New York Times)

É uma certeza no setor de hospitalidade de que os chefs marcam presença em sua comunidade de maneiras grandes e pequenas: alimentando profissionais da saúde, cozinhando em eventos de caridade, doando jantares. Desde a morte de Floyd, em 25 de maio, quando os protestos contra o racismo sistêmico surgiram nos EUA, muitos chefs esvaziaram a geladeira para alimentar os manifestantes e os profissionais da saúde, e formaram organizações como a No Us Without You, um grupo de Los Angeles dedicado à segurança alimentar para cozinheiros de restaurantes que vivem de forma ilegal nos EUA.

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Mas são os confeiteiros e padeiros que estão guiando o setor para o ativismo, transformando a venda dos produtos em uma grande arrecadadora de fundos para várias causas políticas. E, em uma parte do mundo da culinária há muito dominada por mulheres brancas (e homens brancos antes delas), a voz de mulheres latinas, negras e asiáticas está ficando mais alta – e arrecadando dinheiro de verdade para a luta contra o racismo.

O Southern Restaurants for Racial Justice, um novo grupo formado por três confeiteiras – Lisa Marie Donovan, de Nashville, no Tennessee; Sarah O’Brien, de Atlanta, na Geórgia; e Cheryl Day, de Savannah, também na Geórgia –, arrecadou US$ 100 mil para a Color of Change, organização que luta por justiça racial, com uma venda de doces para o Dia dos Pais.

No dia 19 de junho – chamado de Juneteenth, para comemorar a emancipação dos escravos –, mais de 50 chefs e padeiros da região de Los Angeles contribuíram para o Pies For Justice, que levantou US$ 36 mil antes de esgotar todos os produtos cinco minutos depois que entrou no ar. E, em uma venda global on-line promovida no dia seguinte, mais de duas mil pessoas contribuíram com assados para a Bakers Against Racism e levantaram mais US$ 1,9 milhão em doações.

Por que os padeiros e os confeiteiros? Muitos dizem que, no mundo dos restaurantes, a confeitaria ainda é considerada um trabalho de mulher. Os que têm sucesso – especialmente os que não são brancos – estão acostumados a lutar para serem ouvidos; para eles, assar é uma linguagem de protesto.

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Mallory Cayon, que ajudou a criar as cultuadas receitas do restaurante Sunday, no Brooklyn, em Nova York, manteve seu trabalho como confeiteira enquanto o grupo Sunday Hospitality se expandia para quatro restaurantes: dois no Brooklyn e dois em Los Angeles. Ela disse que, pela primeira vez desde que ingressou na profissão, está em um local de trabalho em que a operação de confeitaria (composta principalmente por mulheres) está em pé de igualdade com o lado “saboroso” da cozinha (formado principalmente por homens).

“Já na escola de culinária, ao olhar para os lados, você só vê garotas. Os homens que trabalham com isso são considerados menos masculinos”, comentou Cayon, de 30 anos, que afirmou estar surpresa com o fato de que o desequilíbrio de gênero nesse setor tenha se mantido tão forte, mesmo muito tempo depois que a maioria dos locais de trabalho se tornou mais inclusiva.

Para Dianna Daohueng, diretora culinária da loja Black Seed Bagels, em Nova York, trabalhar no ramo de restaurantes sendo mulher, sendo uma pessoa de cor ou sendo uma americana de primeira geração – ou, no caso dela, as três coisas – significa enfrentar o preconceito todos os dias. “Ser uma minoria na cozinha e na vida faz você se tornar naturalmente uma ativista”, afirmou Daohueng, de 38 anos, cujos pais imigraram da Tailândia antes de ela nascer.

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(Foto: Christopher Gregory / The New York Times)

A venda de assados em nome de causas de direitos civis tem uma longa história entre os afro-americanos. Mas a onda atual começou durante o período que antecedeu a eleição presidencial dos EUA, em 2016.

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As postagens nas redes sociais sobre “estresse assando” e “raiva assando” apareceram alguns anos antes. Mas Tangerine Jones, artista negra do Brooklyn, começou o que chamou de “ódio assado”, em 2015, para canalizar o sentimento sobre o racismo manifesto que ela viu nas mensagens da campanha de Trump. Ela entregou seus produtos aos amigos e aos vizinhos e passou a usar o termo para se identificar no Instagram e no Twitter.

Após a eleição, as principais confeiteiras começaram a se manifestar. Em 2017, Natasha Pickowicz organizou um evento de venda de assados de alto padrão em Nova York, para arrecadar dinheiro para a organização Planned Parenthood. O evento passou a ser realizado anualmente, com as vendas saltando de US$ 8 mil em 2017 para US$ 100 mil em 2019. Naquele mesmo ano, as chefs da região de Los Angeles, lideradas pela padeira Zoe Nathan, deram início ao Gather For Good, que promove a venda de assados ao ar livre em benefício da União Americana pelas Liberdades Civis e de outros defensores da liberdade de expressão.

A migração das vendas para as redes sociais – especialmente para o Instagram, em que fotos de doces e de pães atraem enorme atenção – fez com que elas se tornassem ferramentas ainda mais poderosas.

Em quatro de junho, a Bakers Against Racism se tornou pública no Instagram. Velez havia convocado outros dois fundadores de Washington: a confeiteira Willa Pelini e o chef e padeiro Rob Rubba, que também é artista gráfico.

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Eles aprimoraram o modelo de venda dos produtos, permitindo que finalmente viralizasse – ao não reter uma parte do dinheiro arrecadado.

Os organizadores criaram o nome e a hashtag, compartilharam as imagens e a linguagem que os padeiros poderiam usar nas redes sociais em um Google Doc e sugeriram que as organizações fizessem doações, embora cada padeiro possa decidir para onde vai cada fundo. Os padeiros individuais fizeram o resto, conectando-se com as comunidades locais para receber os pedidos e fazer as entregas.

“Não queríamos que tivesse de ser arrumadinho e patrocinado. Os padeiros e os compradores têm a mesma importância nesse movimento”, explicou Rubba.

Mais de 2.500 proprietários de padarias, confeiteiros e padeiros participaram, incluindo polos que se formaram em Berlim, em Paris, em Londres e em lugares distantes como a Austrália, a Tanzânia e a Turquia.

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A maioria dos chefs diz que assa porque é a única ação prática que pode tomar atualmente contra o caos e a injustiça.

“Não sei nada de política; não sou uma advogada que pode tirar as pessoas da cadeia, mas posso fazer biscoitos. E talvez, se eu vender biscoitos a alguém, consiga iniciar uma conversa sobre o motivo pelo qual estamos fazendo isso”, afirmou Pelini.

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