O bairro Abraão, na parte continental de Florianópolis, recebeu este nome por causa de um personagem reconhecido pelos seguidores do cristianismo e do judaísmo. Igualmente do islamismo, segunda maior religião do mundo e surgida por meio das pregações do profeta Maomé, o qual se considerava da linha de Abraão. Tradicional reduto de nativos, especialmente de famílias de pescadores e de pequenos comerciantes, o bairro cresceu junto com a cidade, e hoje abriga muitas famílias vindas de fora.
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Neste Natal, uma delas, a do Abdul Khaliq, ainda que não cristã, pode inspirar aquelas que entendem a data de 25 de dezembro como uma festa em família. Este sentimento independe da religião. Para quem foi forçado a deixar o Afeganistão ao ver o grupo ultrarradical Talibã tomar o poder, em agosto de 2021, estar reunidos no próximo domingo, dia 25, é um verdadeiro presente.
Abdul Khaliq, 63 anos, é casado com Fawzia, 58 anos, e juntos têm sete filhos. Antes do Talibã se apossar da capital Cabul, eles viviam em Logar Province, a 80 quilômetros da cidade com 4,5 milhões de habitantes. O pai é dentista e trabalhava como diretor em um hospital público, enquanto Fawzia se envolvia com os cuidados da casa. A família estava numa festa de casamento quando os radicais avançaram. Daquelas festas com música, dança, comida farta e que devia durar dias, como gostam os mulçumanos. Até que alguém recebeu uma notícia no WhatsApp: as ruas de Cabul estavam cercadas pelas milícias e era preciso se esconder. Ainda mais uma família com três filhas e duas noras. Estudantes e professoras, elas poderiam ser alvo dos radicais que humilham e perseguem especialmente mulheres.
Assim como milhares de outros afegãos, a chegada do grupo fundamentalista ao poder no país asiático separou a família. Dois dos quatro filhos homens estão longe, um na Alemanha e outro no Tajiquistão. Além dos pais, conseguiram visto humanitário no Brasil as três filhas. Com 17 anos, as gêmeas Raihana e Rahima tiveram que interromper os estudos do que seria o ensino médio, enquanto Halima, 33 anos, formada em Letras Espanhol e professora de Matemática, forçada a abondar a escola.
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Em Florianópolis, adultos e crianças se apertam em um apartamento de dois quartos disponibilizado pela organização da sociedade civil Círculos de Hospitalidade. A instituição trabalha com proteção e integração de populações refugiadas e migrantes. No mesmo espaço ainda vivem Obaidullah, 31 anos, casado com Sorya, 32 anos, pais de Reshad, 6 anos, e de Usman, 16 meses. Obaidullah é engenheiro, fala inglês fluentemente e trabalha com tecnologia da informação.
Futuro diferente para os filhos e disposição para trabalhar
De todos, o mais falante é Khaled Ahmad, 41 anos, que por 16 anos atuou como assessor para a Organização das Nações Unidas (ONU), em Cabul. Ele é casado com Atefa, 37 anos, e pai de Rashed, 11 anos.
– Deixamos casa, empregos, amigos e todo o resto por questão de segurança de nossas vidas. Também pelo futuro das crianças. Desde pequenos convivemos com conflitos. A nossa vida foi marcada por essa tensão, pelo deslocamento forçado, por essas idas e vindas, entre o Afeganistão e o Paquistão, onde fomos morar quando da invasão pelos soviéticos. Retornamos um tempo depois, pois era nosso lugar. Agora a gente quer um futuro diferente para os nossos filhos – explica.
Com a chegada do Talibã, ele se tornou alvo e foi o primeiro a deixar o país. Funcionário da ONU e trabalhando com políticas públicas para empoderamento das mulheres afegãs, Khaled Ahmad era considerado inimigo mortal para as milícias do grupo radical. Depois, foi a vez da esposa e do filho saírem do país, mas tudo isso levou meses, o que fez com que ficassem escondidos dentro de casa.
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– Todo mundo ficou em choque, da criança ao idoso. Os afegãos se lembravam do que aconteceu na década de 1990, quando eles (talibãs) chegaram ao poder. É um grupo muito radical, agem como bárbaros, simplesmente matando as pessoas. Nas ruas, as mulheres corriam gritando. Fugiam sem nem saber para onde – diz ele, cobrindo os olhos com as mãos para esconder as lágrimas.
Khaled Ahmad conta que a moradia da família ficava numa área próxima ao aeroporto de Cabul. A família testemunhou o desespero das pessoas querendo sair, o entorno completamente tomado de gente, as ruas bloqueadas pelas milícias. Assim como as rotas de fugas que eles mesmo tentaram fazer, sem êxito, por estradas de terra e montanhosas, e que levavam para a fronteira. Em meio a isso, os talibãs atirando ao esmo para dissipar a multidão.
Alta qualificação profissional e busca por emprego
Em dezembro, por serem familiares de funcionários da ONU e com visto em mãos, conseguiram deixar o Afeganistão. A esposa e o filho voaram de Cabul para Islamabad. Enquanto isso, o irmão fazia o trajeto por terra com o resto da família. Uma viagem de 24 horas marcada pela tensão de a qualquer momento ser interrompida por uma ordem das milícias talibãs. Dias depois, já longe dos olhos dos talibãs, eles começaram a buscar um país para se refugiar. Estados Unidos, Alemanha e Austrália já estavam com grande contingente, então, o Brasil foi identificado como uma das nações que oferecia visto humanitário.
Após muitas tratativas burocráticas, desembarcaram no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Como tinham economias, conseguiram um quarto de hotel. Conhecidos de uma família afegã que já tinha vindo para Santa Catarina, fizeram contato com a ONG Círculos de Hospitalidade. Até então, pouco sabiam pela vida num país com cultura tão diferente.
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Agora, vivem a expectativa de um novo destino. Falam em uma nova moradia e conseguir empregos e escola para que crianças e adolescentes possam continuar a estudar.
– Precisamos achar bons empregos, pois é um desperdício de mão de obra com alta qualificação que as pessoas desta família possuem. Florianópolis é um hub de tecnologia de muitas empresas onde os funcionários falam inglês, e entre esses temos pessoas que falam inglês fluente, com linguagem de programação e de tecnologia. Penso que a curva de aprendizado deles seja muito grande. Só que precisam de uma oportunidade, precisam de alguém que olhe para o potencial que carregam – diz Bruna Kadletz, fundadora e presidente da Círculos de Hospitalidade.
A Círculos de Hospitalidade é uma organização sem fins lucrativos que implementa projetos socioeconômicos, educacionais e culturais com o objetivo de facilitar o processo de integração de refugiados e migrantes vulneráveis nas sociedades de acolhida. A entidade tem projetos financiados por uma fundação americana de apoio através de transferência de renda. Ao todo são beneficiadas 250 famílias, e os afegãos estão sendo abraçados para todo o ano de 2023. A verba garante o aluguel e outras pequenas despesas.
– Dinheiro para pagar o aluguel por um ano está assegurado. Mas será com emprego, aprendizado da nossa língua e escola para as crianças que eles terão os direitos de pessoas refugiadas assegurados – explica Bruna.
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Bairro que hospeda os muçulmanos tem nome de profeta
A família afegã gosta de morar no bairro Abraão. A proximidade com o mar, o parquinho para as crianças e a facilidade com que chegam ao Centro são atrativos. Do ponto de vista histórico, pelo menos até 1999, a origem do nome não tinha a ver com a história do profeta bíblico Abraão, informa o pesquisador Nereu do Vale Pereira, autor de vários livros sobre a história de Florianópolis e dos seus moradores.
Inicialmente, explica Pereira, o nome estava relacionado à palavra “abra”, que em termos geográficos significa: “entrada de mar em terra, de menor proporção que uma baía, que oferece abrigo para que os barcos possam atracar e abastecer”. Como se tratava de uma abra bastante extensa, os moradores costumavam denominá-la de um “abrão”, e que na época pertencia ao bairro Bom Abrigo. Em todos os mapas antigos, é assim que está grafado o nome da localidade.
A história do hoje Bairro Bom Abrigo remete a um loteamento iniciado na virada da década de 1940 para 1950, por Almir Saturnino de Brito e Coronel Américo Silveira D’Ávila. Um dos primeiros moradores a construir uma casa nesse loteamento foi o pai do ex-governador Esperidião Amin, um palestino-libanês bastante religioso.
De acordo com Pereira, esse sempre defendeu a mudança para Abraão, repetindo o processo por que passou o próprio profeta em sua trajetória: pela obediência e fé do primeiro patriarca do povo de Israel, que aceitou sacrificar o próprio filho em nome do Senhor, Deus trocou seu nome de Abrão (em hebraico Abram), que significa “grande Pai”, por Abraão (em hebraico Avraham), que significa “pai de muitos”. Conforme trecho da Bíblia, em Gênesis 17:5: “E não se chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por pai da multidão de nações te tenho posto”.
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Na visão de Vale Pereira, esta posição acabou pesando na hora em que a prefeita Ângela Amin, mandou o projeto de lei sobre os bairros para a Câmara de Vereadores. A equipe técnica formada para embasar a lei tinha como sugestão o nome Abrão e não Abraão. Mas a prefeita assina em julho daquele ano a Lei nº 5504, que divide a cidade em bairros e define os respectivos limites.
A cultura islã e as outras comemorações
Para os católicos, o Natal é o dia de celebrar o nascimento de Jesus. No entanto, a celebração da data não faz parte das tradições islâmicas. Isso porque, para os muçulmanos, Jesus não é filho de Deus, mas sim um profeta, e eles não comemoram o aniversário de profetas. Os cristãos também não comemoram o nascimento de Moisés, Abraão, Davi e muitos outros. Mas existe uma resposta para isso: Jesus foi revelado para os cristãos, como Mohammad foi revelado para os muçulmanos.
Não é só o islã que deixa de comemorar o Natal, outras culturas como a indiana e a japonesa também não celebram. Ainda que para os muçulmanos Jesus não seja filho de Deus, isso não significa que seja proibido participar das festas natalinas. O islã tem outras festas religiosas no calendário, e uma delas é o Eid sulfitar, que acontece todos os anos após o último dia do mês do Ramadan, quando os muçulmanos jejuam durante todo o período.
O Ramadã, também escrito como Ramadan, é o nono mês do calendário islâmico, que se baseia nos ciclos lunares e possui 354 ou 355 dias. Esse é um mês sagrado para os muçulmanos, pois, na religião islâmica, se trata da mensagem de Allah para Muhammad (Maomé) sobre o Alcorão.
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O Eid sulfitar é uma festa para marcar o fim do jejum, que começa da hora que o Sol nasce até a hora que ele se põe, uma celebração por todo o esforço que fazem jejuando. Uma outra festa religiosa islâmica é o Eid Ul Ada, que é uma festa de sacrifico, que acontece durante o Hajj (peregrinação anual à Meca). Todos os muçulmanos que estão nesse dia fazendo peregrinações devem sacrificar um carneiro e distribuir a carne aos necessitados. Na sequência, visitam amigos e parentes e levam presentes e muitas carnes.