Emerson Gasperin
Colunista de música do caderno Anexo
O primeiro show solo do guitarrista Sérgio Dias depois da volta dos Mutantes não foi em Londres, Chicago, São Paulo ou Rio de Janeiro, onde a segunda encarnação da banda – com Zélia Duncan nos vocais – realizou “noites históricas”. Foi em São Martinho, uma cidadezinha de 3,5 mil habitantes a 140 quilômetros de Florianópolis, como atração principal do Psicodália 2007. A singularidade da situação interessou à então maior revista de música do país (Bizz), que mandou um desavisado (eu) conferir a coisa toda.
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Como se o nome do festival não bastasse, quaisquer dúvidas sobre sua proposta foram se dissipando pelo caminho. O prometido carnaval de música, arte e lazer aconteceria em uma chácara chamada Recanto da Natureza. De terça-feira a sábado, a programação incluía 23 grupos, como Casa de Orates (SC), Magia Elétrica (RJ) ou Vitrola Velha (PR); quatro esquetes teatrais, sendo um deles O Livro da Pedra ou Os Cinco Livros de Matusalém; e 11 oficinas, entre as quais massagem ayurvédica, pintura de mandalas e tingimento tye-die.
O temporal que castigou o domingo inteiro tornou a experiência mais fantástica. Para o folião das galáxias ingressar no espetáculo, era necessário assinar uma ficha declarando estar ciente do regulamento, mesmo que a única regra à vista dissesse que “você é responsável por suas ações”. As placas dos carros e ônibus acusavam a presença de gente de todo o Sul, Sudeste, Mato Grosso do Sul e Bahia, relaxando em barracas à beira de um riacho, pelos morros ao redor ou nos campings “Mutantes”, “A Chave” e “Secos e Molhados”.
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Enquanto escurecia, surgiram burgueses fantasiados de hippies, chinelões fedendo a hippies, barangas assumidamente hippies, ravers deslocados pagando de hippies, gatas molhadas; enfim, um caleidoscópio da juventude praticante do psicodelismo em várias modalidades. No palco, as bandas eram anunciadas por um mestre de cerimônia descalço, de chapéu de bruxa, paletó vintage, bermuda e copo na mão. Tratava-se de um dos organizadores do negócio, Klauss Pereira.
De túnica preta, como se fosse uma entidade, Dias apresentou músicas de sua carreira solo (Tudo Foi Feito pelo Sol, Filhos do Silêncio, Escravos da Revolução). Os “baurets” apareceram, mas não os Mutantes, ausentes no set list. O mais inusitado e fora dos padrões, porém, estava no ar: o Psicodália não tinha nenhum patrocínio, nenhuma área VIP e nenhum DJ. Parecia uma alucinação, um flashback do tempo em que marketing era papo de careta e maluco gostava de rock.
Neste “Woodstock brasileiro”, o papel de Max Yasgur nativo coube a Osni Rech. Como o dono das terras que abrigaram os famosos três dias de paz e música em 1969, ele era proprietário dos 45 hectares que compõem o Recanto da Natureza. Fã de duplas sertanejas, o colono não se sentia muito à vontade com a procissão colorida que invadiu seu complexo turístico. No entanto, garantiu que recebeu seu dinheiro conforme o combinado, desmentindo a máxima punk que diz para jamais se confiar em um hippie.