Por Gabriel Rosa*
Enquanto aguardava o lanche ficar pronto na barraca de cachorro-quente na Trindade, em Florianópolis, o casal dividia uma garrafa de refrigerante de dois litros. Um homem aparentando cerca de 60 anos, com a imagem mais estereotipada de um morador de rua – cabelo desgrenhado, roupas sujas, meio bêbado – aproximou- se e pediu um copo a eles, com uma reverência até mesmo exagerada.
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Embora se tratasse de um estabelecimento a céu aberto, desses sem paredes e com cadeiras de plástico na rua, o homem sabia que era indesejado e manteve distância das mesas para evitar que sua presença se tornasse ainda mais evidente.
Quando o casal lhe informou que ele precisaria pedir um copo no balcão, se instaurou um cenário constrangedor para todos os presentes: a mulher que preparava os lanches não queria dar um copo para ele, porque “se dá para um, logo vêm todos”, repetindo alto o bastante para que todos ouvissem.
Os donos do refrigerante ficaram com vergonha e não quiseram intervir, enquanto o atendente não sabia se dava o copo ou não, aparentemente com pena e ao mesmo tempo preocupado com a opinião da chefe. Após um ou dois minutos de discussão, o homem – acanhado, ainda sem entrar no espaço das mesas da lanchonete – conseguiu o copo de plástico, encheu, agradeceu e foi embora por uma rua próxima.
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A simples presença das pessoas sem moradia fixa costuma ser vista com desconforto pela população em geral. Avessos à mídia, às pesquisas acadêmicas e aos censos, os moradores de rua sequer constam nas informações do IBGE, que contabiliza os brasileiros dividindo-os por domicílios. Qualquer estimativa se torna ainda mais imprecisa quando se leva em conta a quantidade de pessoas que permanece em constante movimentação, de cidade em cidade, de país em país.
Realizei uma pesquisa com parte dessa população no mestrado em Antropologia Social da UFSC entre 2011 e 2013, quando passei pelo menos um mês em contato direto com moradores de rua no Centro de Florianópolis, além de um longo período de outros contatos, visitas a pontos frequentados por eles, almoços comunitários ou simples passeios pelo ambiente noturno da Capital.
O primeiro preconceito que cai ao chão quando a gente se aproxima de alguém que usa a rua como moradia é a fantasia de uma identidade única. A noção de “morador de rua” é considerada bastante imprecisa, já que a maioria deles possui uma longa história de idas e vindas. É por essa razão que parte das entidades sociais e pesquisas acadêmicas preferem usar o termo “em situação de rua” – alguém que está, e não que pertence a uma determinada condição.
Na linguagem cotidiana, “morador de rua” vira sinônimo de “mendigo” ou de “andarilho”, embora uma coisa não implique outra. Cada pessoa que conheci durante a pesquisa encontrava uma maneira diferente de permanecer na rua: pedindo dinheiro, lavando e cuidando de carros, juntando latinhas, vendendo artesanato ou pinturas e fazendo o meio de campo entre traficantes e usuários com medo de subir o morro. Alguns apelam a assaltos, enquanto outros se sentem humilhados até mesmo em esmolar, vivendo apenas de pequenos bicos – pintor, jardineiro, latoeiro, pedreiro.
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Os que trabalham mais duro, obviamente, são aqueles que precisam de mais dinheiro: os dependentes químicos. A vida é agitada quando se precisa dos constantes estímulos que algumas substâncias proporcionam. Como meu trabalho trata justamente das formas de subsistência de quem mora na rua, achei prudente me aproximar desse grupo específico no Centro de Florianópolis. Uma das primeiras pessoas que conheci na rua, um rapaz de 25 anos, havia saído de Porto Alegre, mas chegando em Florianópolis começou a “aprontar”, como me disse.
Fumava crack e não tinha nenhum pudor em falar disso, apesar de sempre comentar o assunto num tom sério, e não com orgulho ou achando graça. Em 2012, já morava há dois anos na rua, mas ainda se impressionava com o quanto o ser humano se acostuma a tudo: dormia em qualquer lugar, comia o que os restaurantes davam na hora de fechar e fazia vários bicos pela rua durante a madrugada.
– Não importa como ou quanto eu ganhe, vai tudo para crack e pó. Beber, eu não bebo quase nada; meu negócio é a pedra e a cocaína. Nesse fim de semana fiz um corre para uns playboys, ganhei R$ 150. Cheirei tudo, comprei umas buchas enormes e acabei dormindo na rua de novo.
Embora pelo menos 10% da população brasileira seja considerada alcoólatra e 15% tabagista, o poder do vício ainda parece ser uma grande surpresa para nossa sociedade. Já para os usuários de crack, nenhuma novidade: absolutamente todas as pessoas com quem conversei sobre a droga enfatizaram os perigos que rondam a dependência química. Um usuário me fez prometer que jamais fumaria crack, e mais tarde me deu um livro com uma dedicatória repetindo a orientação.
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– Ver a minha filha nascer havia sido a maior emoção da minha vida, até fumar crack pela primeira vez. Fui expulso de casa pela minha esposa e agora estou tentando voltar – confessou um andarilho que passava por Florianópolis em 2010, comemorando os seis meses longe da droga.
Acompanhei moradores de rua em todo o tipo de situação cotidiana, e embora vários deles infringissem a lei com frequência, é impossível generalizar um universo tão complexo como este ou recomendar tratamentos compulsórios, como se ouviu em meio aos recentes protestos de Florianópolis. Criminalizar as pessoas que evidenciam a maior ferida da modernidade é tomar a consequência como causa, tentar curar uma doença grave tomando remédios para dor de cabeça.
Nas últimas semanas, criou-se uma forte discussão a partir do discurso incisivo de alguns manifestantes em Florianópolis, mas as grandes cidades brasileiras enfrentam o mesmo dilema interno há décadas. Atualmente, são cerca de 350 moradores de rua na capital catarinense, como afirma o secretário de Assistência Social, Alessandro Abreu. A estimativa é que cheguem mais 150 na temporada, principalmente artistas de rua.
A antropóloga Simone Frangella explica como a cidade de São Paulo já utiliza artimanhas para manter moradores de rua em constante circulação desde o começo dos anos 1990: bancos de ônibus em que é difícil se deitar, iluminação de becos vazios, pisos irregulares embaixo de viadutos – elementos da técnica que ficou conhecida como “arquitetura antimendigo”.
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O poder público, sem ter muito o que fazer, colabora com o jogo de empurra-empurra. Como agir diante de um morador de rua que não quer receber nenhum tipo de intervenção? Interná-lo à força num albergue? Ressuscitar a antiga lei contra “vadiagem” de 1941, que prendia desempregados ociosos que permaneciam em lugares públicos? Tais opções batem diretamente contra os direitos constitucionais, mas a pressão popular é forte e o poder público se vê obrigado a resolver instantaneamente um problema histórico e global.
A Cracolândia, na capital paulista, é o maior exemplo recente desse disfarce da trágica realidade urbana. Desde 2005, a prefeitura vem retirando moradores de rua, prostitutas, catadores de latinha e usuários de crack do local com o propósito de revitalizar a área. O principal resultado da operação é a migração de todas essas pessoas para regiões próximas, e nenhuma melhoria real na qualidade de vida delas.
Há dois anos, conheci um homem que havia dormido nas ruas de Florianópolis por 15 dias. Eram duas da tarde de uma segunda-feira quando conversávamos. Inocentemente, perguntei se a polícia os encaminharia a outro lugar caso os encontrassem deitados àquela hora perto da Praça XV, no centro da cidade.
– Encaminhar? Eles dão é um corre na gente! Falam “some daqui, senão vai ver só”. Tem um cara dormindo aqui atrás de uma árvore agora. Se a polícia vier, logo correm com ele daqui da praça.
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Uma ambígua rede de compreensão e repulsa também ajuda a manter as pessoas circulando de um lado para o outro pela cidade. Era comum conhecer homens que andavam quilômetros no mesmo dia atrás de um almoço comunitário na Catedral Metropolitana do Centro, um banho na casa de alguém na Trindade, atendimento no posto de saúde em Coqueiros.
Na hora de dormir, sempre o mesmo dilema: andar mais duas horas até um local onde guarda suas coisas, escondido no mato, ou deitar em qualquer lugar, sujeito a ser roubado durante o sono ou acordar apanhando? É conhecido que inúmeras prefeituras facilitam como podem a concessão de passagens para que moradores de rua voltem a seus locais de origem. Entretanto, a lenda dos ônibus cheios de mendigos sendo enviados para longe serve apenas para demonstrar o caráter passivo que tal personagem assume nas discussões sobre liberdade individual e autonomia.
Uma afirmação como essa pressupõe que um morador de rua seja incapaz de tomar decisões por conta própria, enquanto, na verdade, a movimentação é tão constante no universo deles que existe até mesmo uma expressão para quem não sai da estrada: trecheiros.
Florianópolis é uma cidade que não vive um abismo tão grande entre o poder institucional e os indivíduos marginalizados, como já acontece nas grandes capitais brasileiras, mas tem caminhado nessa direção. É urgente parar de ver o meio urbano como uma guerra e entender o risco de determinar quem pode (e como pode) usar o espaço público.
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* Repórter do DC e mestre em Antropologia Social pela UFSC