O recado não poderia ser mais claro: se medidas não forem tomadas com urgência, Joinville continuará batendo recordes de homicídios ano após ano. Quem alerta é o promotor de Justiça Ricardo Paladino, titular da 1ª Promotoria em Joinville, que atua há mais de quatro anos nas sessões do júri na cidade e representa o Ministério Público no comitê regional de segurança.
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Ele divide com outros dois promotores a tarefa de receber os inquéritos policiais dos chamados crimes contra a vida para levar os responsáveis à Justiça. Joinville já soma 108 assassinatos desde o começo do ano – em 2014, foram 104 – e Paladino avisa que a polícia não dá conta de investigar sequer a metade da metade dos crimes com eficiência. Falta e estrutura e efetivo.
O governo do Estado, nas palavras dele, “virou as costas para Joinville” e hoje a cidade vive “uma roda viva da impunidade”. Em entrevista ao jornal “A Notícia”, o promotor comenta que há uma guerra entre facções, critica a falta de envolvimento das lideranças políticas da cidade e lamenta que a tentativa de se conseguir reforço policial por determinação judicial tenha sido frustrada.
Paladino afirma que a criação de uma delegacia especializada em homicídios poderia dar fôlego à cidade, além da constituição de uma vara criminal para julgar homicídios e tentativas de homicídios.
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A Notícia – Joinville bateu mais um recorde de homicídios neste ano. Como o senhor avalia a violência na cidade?
Ricardo Paladino – O cenário me preocupa não só pelos números, mas porque era previsível. Não chegamos ao fundo do poço ainda, pois temos muito a piorar com o sistema que está aí. Teremos mais crimes, ano após ano, diante da inércia do Estado em relação à recomposição dos efetivos das polícias civil e militar. Joinville vive uma situação caótica, não só pela falta de policiamento na rua, mas especialmente por que poucos crimes são investigados. E, daquilo que é investigado, pouco resulta em denúncia pela falta de qualidade das investigações. Vivemos uma roda viva da impunidade. As pessoas cometem crimes e esses crimes não são apurados. Quando isso ocorre, não são suficientemente esclarecidos. Assim, não permitem ao MP oferecer denúncia ou não se permite uma condenação no Judiciário. E acaba redundando em um sentimento de que o crime aqui não tem consequência. E não tem. Entre homicídios consumados e tentados, sequer um quarto do total tem investigações que permitem oferecer denúncia. É uma porção ínfima de condenações em relação ao número de crimes. Não faço uma crítica às polícias. Pelo contrário. Me associo ao grito dessas instituições. Delegados e agentes vivem uma angústia porque queriam fazer mais e não conseguem por falta de material humano. Não existe uma estrutura minimamente adequada para dar conta da vazão. Em Joinville, não existe o mínimo trabalho de investigação criminal em relação a homicídios.
Especialização
– Florianópolis, historicamente, sempre teve um número de homicídios maior ou próximo ao de Joinville. O que acontece para que estejamos perto de registrar o dobro da Capital? Lá, o Estado começou a atuar com eficiência. Há uma DP de Homicídios e uma vara do júri. Todo homicídio lá é investigado pela mesma DP, que tem um corpo de policiais treinados exclusivamente para tratar de homicídio. Conhecem nomes, apelidos, a forma de agir das organizações criminosas. Por isso, o índice de resolutividade na Capital é muito elevado. A informação está concentrada. Em Joinville, uma investigação fica no Comasa, outra no Morro do Meio. Não se troca informação. Na Capital, há uma vara que só trata de crimes contra a vida. Como tem menos processos, o juiz dá atenção total a esses crimes. A 1ª Vara Criminal de Joinville, no mesmo dia em que faz uma audiência de um homicídio complexo, faz uma tentativa de furto no mercado. Apesar de termos os piores números de SC, o Estado virou as costas para Joinville. Aqui não há a mínima expectativa de que se tenha, em um período curto, uma DP especializada em homicídios e uma unidade judicial. Enquanto estivermos sem efetivo para investigação, sem DP especializada e sem uma unidade judicial de crimes contra a vida, vamos continuar batendo recordes de homicídio.
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AN – Promotores tentaram, via Justiça, garantir mais agentes e delegados para Joinville. Como não foi possível, há frustração?
Paladino – Me sinto frustrado, desmotivado. Aquela ação foi um grito de desespero dos promotores de Joinville. Verificamos onde estão as fragilidades em cada instituição. Chegou o momento em que nós, promotores, não temos mais como cobrar das polícias números melhores porque eles chegaram aos seus limites. Tivemos no campo político algumas iniciativas. Levamos pleitos a deputados, governantes, secretário de Segurança Pública, secretária de Justiça e Cidadania. Não se resolveu. Nos prometiam soluções e sequer se deram ao trabalho de responder aos ofícios do comitê de segurança. A ação judicial foi a última medida para fazermos alguma coisa. Estamos de mãos atadas, vendo o crime acontecer na nossa porta sem ter o que fazer. Infelizmente, a decisão favorável de primeiro grau foi revista pelo tribunal e voltamos à estaca zero.
DESCRENÇA
– Na primeira reunião do comitê de segurança, há dois anos, disse ter certeza de que a situação iria piorar. Dois deputados me fizeram contraponto de que nunca se fez tanto pela região. E não deu outra. Piorou muito. Joinville vive à beira de um descontrole absoluto. As pessoas não acreditam, sequer fazem BO e o crime está cada vez mais forte. A hora que SC acordar para reagir, não haverá mais tempo.
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AN – Como os inquéritos, as investigações chegam ao MP?
Paladino – Os inquéritos chegam com muitas falhas, muito deficientes, justamente pela falta de estrutura. Numa investigação de homicídio, você consegue resultado positivo nos primeiros minutos e horas após o crime. Na medida em que vai esfriando, a comoção diminui e o medo de represálias aumenta. As pessoas não têm mais interesse em colaborar. Como as investigações aqui ocorrem, às vezes, meses ou até anos após o crime, o resultado é nulo. Dos inquéritos que recebo, em boa parte, tenho que pedir que voltem para se colher mais provas. Não é incomum que eu receba inquéritos sem o mínimo de prova. Tenho manifestações nos processos em que peço socorro porque não aguento mais ver isso. Faço muito mais pedidos de arquivamento do que denúncia por homicídio. A maioria dos processos com resultado útil é quando alguém é preso em flagrante.
AN – A atuação da PM no pós-crime supre a deficiência da Polícia Civil?
Paladino – Não supre, complementa. É uma alternativa que se busca para se dar um respaldo a mais a um início de investigação. O que também contribui são as poucas câmeras de segurança que temos. Seria muito útil se efetivamente houvesse a instalação de mais câmeras. Mas esse trabalho da PM é quase um sopro de esperança diante dessa total inatividade do Estado.
AN – E a atuação das facções em Joinville está ligada à proporção de homicídios?
Paladino – Seguramente. Tenho certeza de que boa parte dos homicídios envolve pessoas que têm atuação no tráfico, seja como traficante, como usuário. Hoje é nítida a guerra do PGC e PCC em Joinville. É um equívoco dizer que estão morrendo bandidos e está tudo bem. Não é verdade. O cidadão de bem já está se vendo alvo desses bandidos. Tem locais hoje em que as pessoas andam praticamente livres, armadas, amedrontando a população. Isto gera efeitos que não tem nada a ver com o crime. Efetivamente, há uma guerra de facções e boa parte das vítimas está envolvida. Mas, na medida que se permite que bandido mate bandido, eles vão se dar ao direito de julgar quem é bandido ou não. E vão matar pessoas que nada têm a ver com o crime.
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AN – Como é o enfrentamento ao tráfico?
Paladino – Se no crime contra a vida o Estado não consegue dar uma resposta, imagina na investigação do tráfico de drogas, que é muito mais complexo do que apenas na esfera criminal. É muito mais fácil, com um gesto pequeno, interromper os crimes contra a vida do que os crimes de drogas. Os crimes têm relação, mas não são interdependentes. As pessoas matam menos na Capital porque sabem que tem mais resposta. E matam mais em Joinville porque sabem que tem menos resposta aqui.
AN – O Jardim Paraíso registra um grande número de mortes em Joinville. Há uma leitura particular?
Paladino – No Jardim Paraíso existem dois problemas. Estive lá, me reuni com entidades e lideranças comunitárias. Ali se encontram muito fortes as células do PGC e PCC convivendo. A avenida Júpiter praticamente divide a atuação das quadrilhas. Ocorre uma disputa forte pelos pontos de droga e pela briga de facções. Outro problema é a questão geográfica. A droga não precisa entrar por via terrestre, pode entrar por barco. A posição geográfica do bairro se comunica com São Francisco, com Itapoá. Isso dificulta o trabalho da polícia. E a fuga do bairro é muito fácil. As barreiras não têm efeito prático.
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FALÁCIAS
– O Estado faz políticas, falácias contadas, para iludir a população. Como a força-tarefa que não teve resultado prático nenhum. Temos os mesmos números de homicídios, não melhorou nada, não esclareceu nada. Durante duas semanas, veio um grupo a mais de PMs que ficou em alguns bairros fazendo blitze. Vieram também alguns policiais civis que nas delegacias daqui não significa absolutamente nada, especialmente pelo pouco tempo em que ficaram.
AN – O senhor manifesta opiniões críticas, faz apelos. Sente que há coro?
Paladino – Nossas lideranças políticas estão quase complacentes com o que está acontecendo. Não vejo mobilização na Assembleia, vejo pouca movimentação dos nossos parlamentares em relação ao tema. Eles teriam a obrigação de exercer o trânsito que têm com o governo para pedir esses justos pleitos ao Norte do Estado e não o fazem. Nosso comitê temático tenta desde o ano passado uma reunião com o governador e isto nunca acontece. Temos falhas gravíssimas no sistema penitenciário. Hoje, o nosso scanner corporal não existe, então a droga entra de forma muito fácil no presídio. O celular entra, os criminosos fazem contato. O governo sabe de tudo e nem responde aos ofícios. Não peço para mim, peço para Joinville.
PROVIDÊNCIAS
– Vivemos uma grande crise, mas temos muita gordura que poderia ser queimada. Recuperar o efetivo da Polícia Civil é fundamental. Precisamos urgentemente de uma delegacia especializada nos crimes contra a vida e de uma unidade judicial exclusiva para os crimes mais graves.
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CONTRAPONTO
Secretaria diz que Joinville já tem uma delegacia especializada
A reportagem de “AN” pediu à Secretaria do Estado da Segurança Pública um posicionamento sobre o efetivo da Polícia Civil em Joinville e em relação à possibilidade de se criar uma DP de Homicídios na cidade. Em nota, a secretaria afirmou que os candidatos aprovados nos concursos de 2010 serão todos nomeados, ou seja, 557 agentes, 413 escrivães e 67 psicólogos. Em 2012, diz a nota, foram nomeados 41 delegados.
Outro concurso, realizado em 2014, prevê a nomeação de 340 agentes e 66 delegados. Não são mencionados os números para Joinville. A nota oficial menciona ainda que as administrações passadas passaram longos anos sem realizar a contratação de novos servidores.
– Chama-se a atenção que o número de policiais efetivamente empossados não são destinados, exclusivamente, para Joinville por maior ou mais importância econômica que tenha, porque o valor de uma vida ou patrimônio é o mesmo que em qualquer lugar do Estado de Santa Catarina. Assim, registra-se que, durante a atual gestão, dentro dos limites possíveis, enviou-se o maior número de servidores possíveis para as unidades policiais de Joinville – esclarece a nota.
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Em relação à delegacia especializada, a secretaria menciona que Joinville conta com uma Divisão de Investigações Criminais (DIC) com quatro delegados, quatro escrivães e 17 agentes. A parte voltada aos homicídios, reforça a nota, tem dois delegados, dois escrivães e oito agentes, enquanto a DP de Homicídios da Capital tem um delegado, dois escrivães e 12 agentes.
– Não se pode aceitar, salvo situação anômala, as indigitadas críticas de que não existe trabalho mínimo de investigação de homicídios em Joinville (não seriam quatro agentes número suficiente para mudar o nefasto quadro apontado pelo promotor de Justiça) e que a salvação encontra-se na criação, ou melhor, na abertura de nova unidade policial para tal desiderato, sob pena de a administração se preocupar mais com os espaços físicos do que com os serviços finalísticos da Polícia Judiciária – aponta.
Assinam a nota enviada ao “AN” César Augusto Grubba, secretário de Estado da Segurança Pública; Artur Nitz, delegado geral da Polícia Civil; e Marcos Flávio Ghizoni Júnior, delegado geral-adjunto da Polícia Civil.
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