O Ministério da Saúde trabalha para barrar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que libera o pagamento a doadores de sangue e a venda do plasma humano à indústria. Se aprovada, a proposta reduzirá poderes da estatal federal Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás) — única farmacêutica autorizada a usar o material para a produção de medicamentos.
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Integrantes da equipe da ministra da Saúde, Nísia Trindade, avaliam que acabar com a doação voluntária pode ainda aumentar o risco sanitário e de contaminação em transfusões. Além disso, consideram que a PEC é uma tentativa de enfraquecer a estatal, pois poderia direcionar oferta de plasma para farmacêuticas privadas, inclusive do exterior, e reduzir o produto disponível para a Hemobrás.
— Não há indício de que doação paga melhora algo. Temos um padrão superior ao dos Estados Unidos, onde se remunera o sangue. Não é isso que melhora. É incentivar a doação — afirma o secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Helvécio Magalhães.
— Hoje há absoluto controle de qualidade, levamos para quase zero as transmissões de HIV e hepatite nas transfusões, e parte [do controle] se deve a não comercializar a coleta — completa.
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Apresentada pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS), a PEC 10/2022 recebeu assinaturas de outros 26 senadores de partidos da esquerda para a direita. Dois dos ministros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subscreveram a proposta: Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Carlos Fávaro (Agricultura).
O texto tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) do Senado, presidida por Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Ele também assinou a sugestão.
Relatora da proposta, a senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) elaborou parecer favorável à aprovação. A comissão vai realizar audiência pública sobre a PEC antes de votar o texto.
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No projeto, Trad afirma que existe desperdício de bolsas de plasma no Brasil. O senador cita dados de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) que apontou perda de cerca de 600 mil litros, equivalentes a 2,7 milhões de doações.
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“Outro ponto importante é que, com a pandemia, a coleta de plasma apresentou queda em nível mundial, inclusive nos Estados Unidos da América e em alguns países da Europa que são os maiores coletores do mundo”, diz a proposta
Trad disse à reportagem que o Brasil precisa aperfeiçoar a doação de plasma por plasmaférese, processo em que o plasma é retirado do sangue coletado e uma máquina devolve as hemáceas e outros elementos ao doador.
Criada em 2004, a Hemobrás ficou marcada por apuração da Polícia Federal sobre fraude em licitação de obras e atrasos para finalizar a sua fábrica. Mas a estatal afirma que não há mais problema de desperdício de plasma, pois o produto das coletas feitas no Brasil voltou a ser fracionado no exterior e entregue ao SUS.
A Hemobrás recolhe o plasma excedente dos hemocentros, ou seja, que não é usado em transfusões, trata o produto e envia para o fracionamento. Essa última etapa, que serve para isolar componentes do plasma, hoje é feita em farmacêutica na Europa.
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A estatal recebe os medicamentos de volta, como a imunoglobulina, e distribui para atender parte da demanda da rede pública. A ideia da empresa é realizar todas as etapas no Brasil a partir de 2025 ao finalizar a sua fábrica, instalada em Goiana (PE).
A discussão sobre a PEC ocorre no momento em que a Saúde tem dificuldade de abastecer o SUS com hemoderivados como a imunoglobulina.
Nos últimos anos, a pasta tem recorrido a compras de mais de R$ 300 milhões por medicamentos não registrados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), feitos com plasma estrangeiro.
Esse medicamento é utilizado no tratamento de diversas doenças, entre elas o HIV e imunodeficiências. Desde 2018 o governo acumula compras frustradas e disputas na Justiça e no TCU por causa da imunoglobulina.
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Em nota, a Hemobrás afirma que as bolsas de plasma foram perdidas entre 2016 e 2020, período “em que a estatal ficou impedida de exercer sua missão institucional”.
Nesse intervalo a empresa que estava contratada para o fracionamento, a francesa LFB, perdeu a certificação da Anvisa e não pode lidar com o produto brasileiro. Além disso, a Saúde decidiu assumir a gestão do plasma e retirar poderes da estatal.
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Depois de retomar a gestão do plasma brasileiro, a Hemobrás voltou a enviar o produto para ser fracionado e fornecer a imunoglobulina ao SUS. A empresa, porém, ainda não atende toda a demanda do ministério.
Para o secretário Helvécio Magalhães, os governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) tentaram esvaziar a Hemobrás. O último governo avaliou colocar a empresa à venda.
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— O descarte [do plasma] fez parte da intencionalidade desses governos de destruir a Hemobrás e a iniciativa nacional da indústria. Temos outro pensamento, a pandemia mostrou que o Brasil está vulnerável no complexo industrial da saúde, não tinha nem mesmo máscara disponível — disse ele.
Uma PEC para ser aprovada precisa de três quintos dos votos de cada casa, em discussões de dois turnos.
“A Hemobrás entende que a doação de sangue altruísta é uma cláusula pétrea, não havendo espaço, assim, para a doação remunerada. Nos últimos anos, conseguimos avançar em todo o processo produtivo da cadeia do sangue. Isso garantiu segurança na doação e permitiu o sucesso da indústria de hemoderivados”, disse a estatal.
Em nota, os conselhos de secretários de Saúde dos estados (Conass) e municípios (Conasems) pediram a reprovação da PEC, afirmando que pode “provocar uma grande concorrência pelo plasma brasileiro e inviabilizar a Hemobrás”.
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“O grande gargalo hoje para o seu pleno funcionamento é justamente a falta de plasma industrial no Brasil”, afirmam os conselhos
Já a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) apoiou parte da PEC que trata da autorização de farmacêuticas privadas na comercialização e fracionamento do plasma excedente do Brasil.
“Entretanto, sobre a doação remunerada de plasma para fins industriais, a ABHH neste momento emite posição contrária. Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente de doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado, corroborando para a não liberação desta prática no Brasil.”
*Reportagem de Mateus Vargas