É um lugar silencioso. Sempre, de dia ou à noite, ele é impenetrável mesmo para sons tão prosaicos quanto o choro de um bebê, o toque de um celular ou o latido do cão de estimação. Seria uma terra desoladora se, aqui, as funções não se invertessem: os olhos se transformam em ouvidos, as mãos viram línguas falantes.
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Dominar os gestos e torná-los palavras, então, bastam para se fazer entender e transpor esse muro invisível erguido por bocas inaudíveis, certo? Não, jamais. Para além da mera comunicação, a expressão de um mundo, o sonhar, o brincar de ser outro, a emoção exposta – enfim, o fazer arte. Por meio dele, os sinais transbordam o que o coração está cheio.
O teatro foi o veículo que estes jovens surdos de Joinville encontraram para, literalmente, se fazerem ouvir. Um teatro silencioso como eles, incompreensível sem a ajuda certa, mas que grita uma necessidade muita específica: a de que resumir-se à condição de “coitadinhos” não é uma opção aceitável.
Infiltrados numa arte em que, em princípio, a eloquência e o alcance vocal são primordiais, os atores do Grupo Libração se rebelam contra os próprios limites para atingir alvos como o preconceito e a insegurança, suas e dos mais próximos. O resultado, não raro, é que eles saem do outro lado pessoas mais felizes.
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Desde agosto de 2011, tem sido algo transformador também para Manoella Carolina Rego, atriz, professora de Libras – sigla de língua brasileira de sinais – e diretora do grupo, que ensaia semanalmente no galpão do Dionisos Teatro, no bairro Boa Vista. Foram os alunos dela que protestaram: por que não havia um curso de teatro para surdos na cidade? Bastou uma rápida experiência para a ação ganhar forma.
Da coligação em prol da arte cênica veio a troca de vivências sobre a família, a escola, os namoros, as dificuldades, que forneceram a matéria-prima para a peça de estreia, “Vida de Surdo”, em novembro daquele ano. Em 2012, vieram “Incomodação” (espetáculo de clown) e um teatro playback adaptado para surdos e intérpretes. Nesta temporada, a ideia é apresentar outros dois trabalhos, mesmo o grupo não estando fechado (o número varia de cinco a dez integrantes).
– O teatro não precisa necessariamente do português. Teatro também é expressão, porque as emoções são universais. A comunicação do teatro é corporal, facial -, carimba Manoella.
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Ao perceberem uma nova porta sendo aberta, os rapazes e garotas se descobriram menos envergonhados de sua deficiência.
– Eles tinham medo até de serem chamados na rua -, conta a professora, citando um vídeo do ano passado no qual convocavam outros surdos para participarem do grupo. Agora, eles acreditam que surdo pode tudo.
Muito mais que uma terapia
A professora Manoella Carolina Rego aceita que as aulas e os ensaios tenham um certo caráter terapêutico, mas bate na tecla de que seus protegidos são, sim, artistas de verdade, que se entregam às atividades como qualquer ator faz.
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– O que eu ministro para eles é o que o Silvestre (Ferreira, diretor do Dionisos) vai dar amanhã -, exemplifica.
Uma atitude que reverbera na firme disposição de não serem vistos como eternos necessitados, algo que percebem até mesmo dentro de casa, segundo eles.
– Tem um pouco de preconceito com o teatro, mas alguns pais também acham que o filho não vai dar conta -, Manoella explica, e também garante que dão sim, pois diante da busca de novas formas de expressão a partir da arte, Manoella é regularmente surpreendida por seus alunos atores.
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– O Darley (Nunes), por exemplo, não fala nada, mas é uma das pessoas mais fantásticas que conheço. É alguém que já nasceu artista -, garante a professora, afirmando que sem falar uma única palavra, o rapaz de 17 anos pode ser considerado um tagarela no uso de Libras.
– Antes, era difícil a comunicação na minha família. O teatro abriu minha vida. Podemos rir dos nossos defeitos e todo mundo se entende -, dispara o rapaz, que deseja continuar a fazer vídeos, e garanque que quer distância da imagem de coitadinho.
Plenamente realizada com o trabalho que faz, Manoella garante que, “hoje, é a coisa mais importante da minha vida. Vale muito a pena a confiança que eles têm em mim. Acho que completa tudo o que eu penso a respeito da arte”.
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Uma arte que comunica, mais do que nunca.
Talvez seja um pouco difícil mensurar o quanto estar envolvida com o teatro ajudou Talita Nunes, 29 anos, a expurgar seus demônios nos últimos meses. No Grupo Libração desde 2011, no começo do ano seguinte ela enviuvou, uma dor que a atividade artística ajudou a cicatrizar.
– O teatro ajudou nisso, sinto uma energia que nunca acaba -, confirma, com um ressoar que mostra todo o seu esforço em se fazer entender sem a ajuda das mãos. Sinal – com o perdão do trocadilho – de que o desafio de superar a timidez e o medo da exposição está sendo vencida. Hoje, professora de Libras e grávida de quatro meses, Talita é uma espécie de conselheira dentro da companhia.
Perto dela, Darley gesticula uma palavra que, parece, lhe é muito cara: “livre”. A mesma que é usada por Amanda Godoy. Uma sensação nova para a garota de 17 anos que, antes de entrar para o Libração, ficava dentro de casa, insegura para se comunicar.
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– Não acredito no quanto melhorei -, sorri, apaixonada pela animação que encontra no grupo.
– Falamos dos sentimentos, compartilhamos, rimos juntos. Sinto uma energia que nunca acaba.
A disposição de Amanda é motivo de orgulho para a mãe, Eliete Moreira, antes acostumada a ver a filha retraída, se relacionando basicamente com familiares. A situação mudou dois anos atrás, mas isso não impediu Eliete de também ter suas inseguranças quanto à interferência do teatro num eventual emprego (Amanda ainda não trabalha). Mas ela sabe separar as coisas, garante, feliz com os dias melhores.
Varlei Nunes, pai de Darley, ainda sente uma ponta de estranheza ao ver o filho no palco, mas percebe, gratificado, que ela some junto com a das demais pessoas na plateia. Assim como o rapaz que tem em casa, ele também usa a expressão “liberdade”, reforçando o aumento do círculo de amizades de Darley, sua disposição e natural tendência para comunicar-se mais.
– Antes, ele não se sentia tão à vontade para fazer gestos. Agora, em qualquer lugar em que estivermos, ele fala com a gente sem problemas -, afirma.
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Mais velho da turma, com 33 anos, Tiago Alves Correia é também o único dela que sempre teve (e continua tendo) aspirações artísticas. O sonho de ser ator o acompanhava desde criança, lado a lado com a crescente coleção de filmes, mas a surdez parcial acabou se tornando um obstáculo, e a falta de apoio desanimou-o de vez.
Com boa dicção e eloquência com os sinais, Tiago virou um militante da causa dos surdos – uma de suas lutas é a inserção deles em filmes e novelas, tal qual aconteceu com os protagonistas do longa “Colegas”, portadores da síndrome de Down.
– O surdo tem capacidade. Quero que a arte cênica também reconheça o papel dele -, enfatiza o rapaz, que reencontrou o desejo de interpretar no Grupo Libração.
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Capacidade de expressar emoção ficou melhor
Nathielle Bragagnolo Wougles atende ao telefone e responde ao “alô” do repórter. Sinal de que não tem problemas de surdez. Seu conhecimento a respeito deles, entretanto, é grande, e a ligação com os atores do Libração, forte.
Tudo se deve ao fato de fazer teatro há nove anos e o desejo de aplicar e embasar cientificamente a arte como terapia a pessoas com deficiência. Ao conhecer o trabalho feito por Manoella no Grupo Dionisos, o encaixe foi perfeito e resultou, inclusive, em um artigo de conclusão do curso de terapia ocupacional.
Ela e a colega Iara Mendes Florentino passaram o ano passado inteiro debruçadas sobre o Libração, acompanhando os trabalhos realizados com os atores e propondo outros. A conexão emocional estabelecida fez Nathielle tirar algumas conclusões quanto à interferência positiva do teatro sobre os surdos. ‘Socialização, principalmente’, defende ela.
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– Pelos relatos dos atores, vimos que eles não tinham mais vergonha, porque faziam coisas que os ouvintes faziam, como teatro -, garante.
Sendo mais específica, a terapeuta aponta que a expressão corporal dos surdos, que já é ótima (e melhor até que a de muitos atores experientes), ganhou um upgrade. A arte cênica ainda canaliza a facilidade – junto com a necessidade – com que eles expressam emoção para a compreensão de metáforas, algo dificílimo no mundo sem sons.
– Na busca pela representação da palavra falada, eles conseguem expressar qualquer coisa -, Nathielle esclarece.
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Se a partir disso alguém lembrar a expressão “a vida imita a arte”, estará fazendo a ligação certa. Afinal, os desafios propostos na terapia, aliados aos temas abordados nos ensaios e peças, têm o viés de ajudar os atores a lidar melhor com as dificuldades do dia a dia. E com eles se saíram, Nathielle?
– Incrivelmente bem, melhor do que o esperado. Eles sempre querem o melhor possível e não querem ser vistos porque são atores surdos, mas porque contam boas histórias.
Faça-se, então, a habitual saudação ao elenco ao final dos espetáculos com atores surdos: mãos balançando na vertical e pés pisoteando o chão com intensidade. Eles sabem o quanto é difícil, e o quanto merecem, esses aplausos.
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