Depois de morar nos confins da África, fiz um pacto comigo mesma. Nunca mais poderia reclamar de calor. Na verdade, o mais correto seria nunca mais reclamar de nada, mas eu sabia que não seria capaz de tanto, não estou nem perto da madre Tereza de Calcutá.
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Pois então. Mangunde, onde eu morava, não era pior do que Porto Alegre nos dias mais tórridos de janeiro e fevereiro. Era até bem parecido com aqueles momentos em que o nosso asfalto parece uma frigideira capaz de fritar ovo. A diferença é que lá não havia asfalto. Nem energia elétrica. Um verão sem split, portanto. Sem ventilador. Sem geladeira. Sem água gelada. E até ovo era produto de luxo.
Mangunde é um povoado encravado no interior de Moçambique. Morei lá em 2006, trabalhando como professora voluntária de português. Nos dias mais quentes, as estradas abertas a facão no meio da savana espirravam nuvens de pó que entravam pelos ouvidos, pelo nariz e pelos olhos, tingindo de marrom as roupas brancas no varal. Isso quando soprava vento, claro, e por vento entenda-se aquela brisa morna, que amolece os sentidos.
Se fechasse os olhos e sentisse apenas a temperatura, tudo seria muito familiar, como nos dias mais escaldantes em Porto Alegre. Só que lá não havia para onde fugir. O suor escorria pelo corpo da manhã à noite – e nessas horas até parecia uma bênção o fato de só haver água gelada no chuveiro – para quem podia se dar ao luxo de, como eu, ter chuveiro em casa. Rá, mas nada é tão complicado que não possa complicar-se um pouco mais. A água puxada por geradores para abastecer as torneiras era racionada. E frequentemente acabava no final da manhã.
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Nos primeiros dias por lá, desmaiei de calor. Com o passar do tempo, descobri a técnica milenar de brincar de estátua. Com a cama colada junto à janela, deitava e ficava imóvel. Depois de meia hora sem me mexer, tinha a impressão de sentir uma leve brisa entrando pela tela que protegia contra os mosquitos (e a malária). Era a glória. Nessas horas, pensava: nunca mais posso reclamar de calor na vida.
Só que aí eu voltei para Porto Alegre. E aqui tenho um split todo meu. E tenho água gelada à vontade. E eu não desmaiei mais de calor. Tudo tão lindo. Mas, mas, mas… por mais que eu me esforce, não consigo cumprir a minha promessa. Essa onda de calor recorde não está me ajudando. Quando vejo, lá estou eu praguejando contra o ar quente que estacionou em cima das nossas cabeças. Logo eu, que sempre preferi o verão ao inverno.
Não sei, talvez meu limite de tolerância aos extremos térmicos tenha ficado avariado. Só sei que, nestes dias de calor infinito no Rio Grande do Sul, sempre lembro de Mangunde. O curioso é que por lá é raro ver alguém reclamando contra os céus. Em um dos 10 países mais pobres do mundo, todos têm outras coisas mais graves para se preocupar. Perdão, universo. Na minha pequenez, continuo reclamando de calor no verão (e de frio no inverno).
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