O amor é o sentimento capaz de levar as pessoas à rua, seja para a doença ou para a cura. Vilão de Lourenço Cabral, esse sentimento se tornou uma chaga aberta incurável, que enfermeiros do Consultório de Rua, como Abmael Silva Cabral, tentam recuperar.
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O enfermeiro bem que poderia ser filho do morador de uma das varandas joinvilenses. Mas é a rua que os torna familiar. Cada curativo representa um passo a mais na vida de Lourenço que perdeu todos os dedos do pé esquerdo. A muleta que a equipe do consultório prometeu também ajudará a distribuir o peso de uma vida que insiste em não tombar.
– Quando eu decair é porque não estou aguentando mais – disse um Cabral que apoiava as mãos no chão para se levantar e que, cambaleante, insistiu:
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– É difícil eu cair.
Subindo os degraus onde antes permanecia sentado, Lourenço voltou a se acomodar, dessa vez em uma cadeira, para receber os cuidados de um Cabral vestido de luvas e máscara cirúrgicas. O desembrulho das ataduras é de embrulhar estômagos de quem passa pela calçada e ousa espiar pelas frestas da mureta da varanda.
Sem proteção para moscas, para o mal cheiro e para as dezenas de marmitas jogadas fora no banheiro improvisado, Abmael e as técnicas de enfermagem Daniela Toledo e Daniza Amorim erguem paredes de boa vontade.
O trabalho de limpeza da ferida é feito por Abmael, que raspa o tecido morto. Álcool, água oxigenada e soro fisiológico são colocados sobre a chaga aberta. O curativo precisa ser feito com rapidez.
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– Como é que está aqui, seu Lourenço? – perguntou Abmael, cutucando entre os ossos dos dedos.
Lourenço ficou em silêncio.
– Se doer, avisa – alertou o enfermeiro.
– Não tem doído não. Ai! – discordou e se contradisse o morador da varanda.
– Parece que tem doído mais.
– Se dói é porque tem vida. Só não dói quando está morto – explicou Abmael, aliviando na limpeza.
O enfermeiro finalizou o curativo, passando uma bisnaga de pomada bactericida e enfaixando o pé com bastante atadura. O machucado, Lourenço ganhou quando pisou em restos de uma lâmpada incandescente. O pó químico se espalhou pelo pé. A ferida foi agravada por uma trombose. O morador da varanda precisou amputar os dedos, mas ainda não conseguiu ver a cura de seus pés.
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Em outubro do ano passado, quando se iniciaram as atividades do Consultório de Rua, um programa do Ministério da Saúde, executado pela Secretaria de Saúde, em parceria com a Secretaria de Bem estar Social, ele foi atendido pela primeira vez. Não há esforço que o leve a um hospital para se tratar.
– Ele deveria estar internado cuidando do ferimento, mas não quer ir ao hospital – constatou Abmael, que antes mesmo de começar o curativo novo tinha feito o convite e levaria Lourenço para atendimento médico.
Levar a cura até o homem da varanda é o único jeito de fazer com que ele se trate. A convicção de que será mal cuidado entre paredes de concreto não o deixa sair do lugar. Essa certeza é feita do mesmo material que o mantém na rua.
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– Eu vou passar uma temporada na casa do meu irmão – comentou Lourenço, que é o caçula.
– Mas não quero ficar lá – concluiu, descartando a possibilidade de permanecer em Garuva.
Lourenço vai perder a varanda
Lourenço Cabral nasceu em Paranaguá. Chegou a ficar com a filha em Curitiba. Por insistência dele, desceu a serra e retornou a Joinville. Mas em breve o morador da varanda perderá o codinome. A casa antiga passará por reforma.
Ele, que diz ser o zelador do local a pedido do dono do imóvel, precisará encontrar outro espaço para guardar seus pertences: um cobertor e um radiozinho de pilha, em que ele vê as horas correrem. Perdendo a varanda, só resta a Lourenço ser o “viúvo” da ex-mulher que o ajudou a criar o amor, o grande vilão da história.
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– Ela me deixou e eu saí de casa. Minha filha me disse: fica de olho que a mãe tá te passando pra trás. Fui atrás e peguei ela abraçada com outro no ponto de ônibus – contou o ex-vigilante, que viajava muito para cobrir férias de outros profissionais da empresa onde trabalhava, mas mesmo na estrada lembrava da esposa, que morreria anos depois em uma mesa de cirurgia
– Sabe o que é gostar muito de uma pessoa? Toda hora a gente lembra dela. Lembra do semblante – ensinou.
Em nome da liberdade
Filho de uma família com boa situação financeira que foi perdendo o poder, o homem que mora em uma barraca, não embaixo, mas sobre uma ponte, escolheu viver de simplicidade. Daniel Stamn, reside hoje perto do terreno vendido pela família de sete filhos para uma empresa que ergueu um shopping no local.
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– Optei por seguir o caminho da Bíblia. Trabalhava sempre formulando, calculando, projetando. Só me estressava – esclareceu ele, que não conseguiu terminar a faculdade.
– Meu custo de vida é zero – completou ao afirmar que ganha marmitas e consegue água nas bicas do cemitério.
Ele vive há sete meses acampando, tempo suficiente para estudar as sombras do local. Por isso preferiu fixar sua barraca próximo ao parapeito da ponte, que impede que o iglu seja levado pelo vento, que vem no sentido contrário.
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Quando decidiu morar na rua, a primeira estranheza foi o banho. Ele caminhava todos os dias até um posto de gasolina para se limpar. Depois entendeu o porquê de os “mendigos” andarem “sujos”. Mas nem por isso ele se deixa enquadrar no padrão.
– Se eu quiser eu passo o dia inteiro limpando o meu braço – cogitou ele, que tem além de um pano, detergente e água à vontade.
Para resistir ao sol, o homem da barraca usa chapéu e bloqueador solar. Ele vive há sete anos na rua e teve como primeira moradia e fonte de renda um carrinho de reciclagem.
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– Estou adaptado aqui. Pra que vou atrapalhar a vida da minha família? – questionou.
Durante o primeiro encontro com os membros do Consultório, ele garantiu que sempre teve boa saúde. A aproximação entre o morador e o grupo de enfermeiros foi feita com apoio do Centro Pop, que desenvolve um trabalho de assistência a pessoas em situação de risco e já havia cadastrado o dono da barraca.
A partir do registro na saúde, com direito a cartão do SUS, o homem acampado na ponte receberá visitas periódicas da equipe que atua às segundas, quartas e sextas-feiras.
Num piscar de olhos
– São pessoas invisíveis. Você só repara e só começa a ver quando fala sobre elas – constatou o coordenador do Centro Pop de Joinville, Jucelio Narciza.
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O trabalho desenvolvido pelo Consultório e pelo Centro é voltado àqueles que, por exemplo, não possuem carteira de identidade para conseguir o coquetel anti-HIV e àqueles que quando precisam de atendimento médico não têm comprovante de residência para apresentar aos Postos de Saúde.
Por isso os “moradores de rua” são instruídos a se declararem “moradores de rua“, garantindo o direito de serem recebidos em qualquer unidade de saúde. São pessoas que, mesmo com vínculos rompidos, precisam ser incluídas nos sistemas. Assim pensam aqueles que trabalham com quem vive na rua.
– Adriano – chamou o coordenador do Centro Pop, que chegou antes da equipe do consultório ao local de atendimento.
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O homem de 42 anos que responde “não sei” para quase todas as perguntas e desconhece o próprio nome olhou para Jucelio por debaixo dos cabelos emaranhados. Ele quase não se comunica e, de acordo com o coordenador, não sabe que seu nome é José Antônio dos Santos.
Ele diz não conhecer a própria mãe ou a irmã, que vieram ao encontro dele depois que uma foto foi divulgada no jornal “A Notícia”. Era ele, sorridente, no enquadramento. Quem o reconheceu foi uma amiga de infância. Mesmo com o reencontro, Adriano que é também José continua na rua, de onde não quer sair. Ele passa a maior parte do tempo vagando pela cidade.
– Você quer roupas novas? – ofereceu o coordenador.
– Não.
– Aonde você vai, Adriano? – perguntou Jucelio.
– Não sei – respondeu e saiu de cabeça baixa, parecendo proteger algo entre os braços, um emaranhado de pano puído junto de um copo plástico, como se as roupas que veste e os pequenos pertences fossem tudo que ele sabe de si mesmo.
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Assim, partindo a passadas largas e quase esbarrando com uma pedestre que nem o viu, ele retornou à invisibilidade e sumiu entre as pessoas no tempo de uma piscada.