De repente eles chegam ali. E vêm aos montes. Tomam os corredores, ocupam as camas e, presos a cilindros gigantes de oxigênio, tentam encher os pulmões já debilitados com ar. O silêncio, pouco comum para uma emergência de hospital, virou regra. Ao invés de falar com a boca, se comunicam pelos olhos. Pedem socorro, mostram que tem medo. Enquanto aguardam atendimento, enxergam um corre-corre. Passam médico, enfermeiro, técnico e fisioterapeuta. Mais um doente com a Covid-19 é intubado.
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Debaixo de máscara, luvas e touca, Alice Sumar, 31 anos, é testemunha ocular de tudo. A fisioterapeuta intensivista viu o coronavírus mudar a rotina do Hospital Regional de São José, na Grande Florianópolis. A unidade, uma das maiores do estado, conta com leitos para os infectados pelo vírus e também para os doentes de outras causas. A chapecoense, que antes só lidava com a emergência geral, precisou aprender a cuidar dos que adoeceram pelo coronavírus. Ajudou na criação do protocolo para que os colegas pudessem trabalhar sem se contaminar. Durante o primeiro pico da pandemia em 2020, pensou em ir ao Amazonas. Queria ajudar. Um amigo médico, no entanto, fez o alerta: o caos também chegaria aqui.
Veja no vídeo o diário de Alice no hospital:
Em São José, onde está o hospital em que a fisioterapeuta atua, pelo menos 27 mil pacientes foram contaminados e 280 morreram com a Covid-19. No fim do ano passado, Alice sentiu algo ruim. O pressentimento se tornou realidade nas últimas semanas, quando o trabalho ficou mais duro. Os plantões de seis horas ficaram recheados de despedidas a pacientes que muitas vezes conseguiam apenas dizer seus nomes.
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– É ver para crer. Por mais que a gente tente descrever, não chega a realidade – conta Alice.
Ela começou a trabalhar no Regional, como carinhosamente chama o hospital, vinte dias após se formar na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em 2012. De lá não saiu mais. Soma a função de profissional da saúde com a de professora. Antes da pandemia, voltava à unidade para lecionar com seus estagiários na parte da tarde. A atividade, que se tornou virtual, acompanha agora oito pacientes já recuperados da Covid-19 para avaliação das sequelas deixadas pela doença.

A unidade é um dos maiores hospitais do estado. São 210 leitos de enfermaria ativos e 56 em UTI. Nesta segunda-feira (15), dados do governo do estado mostram que a taxa de ocupação é de 100%. Igual a todas as unidades que atendem doentes com a Covid-19 no estado e no país, a segunda casa da Alice é a última parada para os que buscam a recuperação.
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Ainda sem remédio ou cura instantânea, muitos não conseguem sair de lá com vida. Suas preocupações se tornaram às dos profissionais de saúde, que escutam dos pacientes as perguntas mais banais antes de procedimentos invasivos e sem garantias de recuperação completa: “Como vai ficar minha casa? Será que vou ver ela pronta?” “E como ficam meus filhos?”. Sem respostas, eles adoecem junto.
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– A gente não para, não tem a opção de parar. Profissional da saúde, só realmente se adoecer junto… Não conheço um colega que não está adoecendo junto. Tá todo mundo mal. Tá todo mundo no seu limite e agora, e na hora, que mais precisam da gente.
“Cuidem-se, a situação está crítica”
Acostumada com a morte, Alice lamenta cada uma das perdas. Ao descrever a doença como avassaladora, a fisioterapeuta lembra que o vírus não escolhe raça, gênero ou classe social, e derruba pessoas de todas as idades. Ela faz um apelo:
– Cuidem-se, cuidem-se, porque a situação está realmente crítica.
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E não esquece de agradecer os esforços dos que trabalham e correm ao lado dela:
– Não poderia deixar de aqui a minha homenagem aos profissionais de saúde que estão nessa luta aí há mais de um ano e agora, quando a gente achava que as coisas iam melhorar, pelo contrário, pioraram.
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Diário da linha de frente
Alice compartilhou por um dia sua rotina de trabalho. Mandou vídeos e mensagens mostrando como é um hospital com pacientes da Covid-19 da porta para dentro. A fisioterapeuta mostrou também a dedicação aos alunos e a pesquisa de doutorado. Os relatos foram transformados em texto corrido, como num diário, ou anotações de uma agenda.
Confira o relato de Alice
Hospital Regional de São José, Praia Comprida, São José.
Sexta-feira, 5 de março de 2021.
5h30 – Alice chega meia hora mais cedo que horário do turno. Ela trabalha das 6h às 12h na emergência do Hospital Regional. O motivo é que a profissional precisa fazer a coleta de dados de pacientes que monitora para o doutorado. A pesquisa quer saber os efeitos negativos da intubação nos doentes. O trabalho acontece na UTI Covid-19. Ela usa máscara, face shield, luvas, touca e mais uma camada de roupa. Um estetoscópio está em seu pescoço.
5h45 – Com o fim da coleta de dados, Alice retira a paramentação e segue para a UTI geral.
9h35- “Tinha tudo para ser um plantão tranquilo, mas acabamos de perder um paciente. Ele parou na hemodiálise. Não entendemos muito o que aconteceu”.
9h53 – A fisioterapeuta é chamada na emergência geral. Um paciente chegou ao Hospital Regional de São José intubado. Seu trabalho durante o procedimento é fazer os cálculos para saber quanto oxigênio o paciente irá precisar. Além dela, atua uma equipe multiprofissional com médicos, enfermeiros e técnicos. A intubação é usada em casos graves da Covid-19 para restaurar a respiração dos doentes.
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10h30 – Após estabilizar o paciente, Alice retornou à UTI geral. Ele não usa mais o face shield.
12h35 – “Final do plantão. Vou conseguir almoçar hoje”.
13h05 – “Pós-plantão, indo embora. Estou saindo no horário hoje, nem acredito. Agora eu vou para o segundo round dar aula na Udesc. A gente atende on-line oito pacientes sobreviventes do Covid-19”.
13h30 – “Fui olhar o grupo da minha família e descobri que uma amigona nossa morreu de Covid em Chapecó. Era como se fosse uma tia para a gente”.
17h30 – Após a aula com as alunas, ela começa a escrever os dados da coleta feita mais cedo no Hospital Regional de São José.
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21h30 – “Foi um dia bem intenso. Tivemos uma perda na UTI que nós não esperávamos e intercorrência na emergência geral. Então realmente foi um dia bem puxado”.
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