A pandemia colocou os profissionais de saúde num campo de guerra, sendo o inimigo invisível e disposto a atacá-los. Horas a fio de trabalho, pressão nos hospitais acerca de tomadas de decisões, escassez de equipamentos de proteção, falta de leitos, medo do adoecimento e ainda ter que lidar com a finitude da vida do paciente e fragilidade das famílias. Em que pesa esta realidade pesada, a cada plantão, consulta ou visita domiciliar emergem experiências marcadas pelo que de mais singular existe na profissão de quem trata com a vida, a humanização.

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Naarai Camboim Bezerra trabalha como médica de família e comunidade na Unidade de Saúde do Pantanal, em Florianópolis. Com nove anos no exercício da profissão diz que com a pandemia experimenta um aprendizado que nenhum livro ou escola poderiam proporcionar.

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— Nossas vidas estão inseridas em um contexto de incertezas e temos que buscar respostas que possam dar clareza e sabedoria para as pessoas, bem como conforto, em momentos em que as palavras não cabem mais – diz Naarai, que faz parte do projeto @descomplica_doutoras, que surgiu com a intenção de fornecer informações de saúde de forma simples e clara para a população em geral.

A profissional conta que buscar aliviar a dor dos familiares que não podem se despedir das pessoas que perdem a batalha para o vírus tem sido um desafio muito grande. É o que experimentou ao acompanhar o primeiro óbito de uma paciente de Florianópolis. Perceber os sentimentos de uma morte desamparada e de não poder se despedir como desejavam dos entes queridos é muito impactante, pois os ciclos de lutos parecem não se encerrar.

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Além disso, o isolamento imposto pela Covid 19 deixa uma sensação de morte desemparada:

— As pessoas sentem não poder dar a mão, sentir o calor do fôlego dos últimos suspiros, o toque no rosto – relata Naarai.

A médica sugere uma reflexão que vai além do que fazem os profissionais de saúde, mas toda a sociedade. Inclusive, pessoas que não reconhecem os riscos da pandemia e seus efeitos.

— Cuidar da saúde dos outros exige esforço e doação e reflete no coletivo, na engrenagem chamada sociedade. O descaso ou desconhecimento destes efeitos tende a ser trágico, como aconteceu em outros países e que devia ser o grande aprendizado para nós brasileiros.

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Cuidados para quem cuida

Mas é verdade que medo, angústia e ansiedade são obstáculos para manter a saúde mental em dia. A situação é preocupante e o Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina (Simesc) deflagrou uma campanha chamando a atenção para a Síndrome de Burnout, distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse provocado por condições de trabalho desgastantes. A síndrome se manifesta especialmente em pessoas com profissão exige envolvimento interpessoal direto e intenso.

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Para ajudar a gerenciar o equilíbrio necessário algumas iniciativas estão em prática. Na última semana, o Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina lançou um desafio aos profissionais catarinenses: ofereceu a eles e elas a oportunidade de contar um pouco do que vem ocorrendo no front do enfrentamento à pandemia. A ideia é que eles possam se expressar sobre a rotina dentro das unidades de trabalho e sobre a relação no atendimento ao paciente – preservando o sigilo. Com isso, ajudar a dar visibilidade neste momento desgastante em que permanecem priorizado o bem-estar dos pacientes através dos cuidados prestados.

Além disso, fazer uma espécie de reconhecimento público ao destacar as habilidades, a técnica, o conhecimento científico e o empenho de cada profissional. A divulgação das histórias será feita pelo site e redes sociais do Coren catarinense.

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Atendimento com psiquiatras para profissionais do HU, na Capital

No Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, o HU da UFSC, existe outra iniciativa voltada aos profissionais da saúde. Cerca de 560 pessoas receberam atendimento psicológico e emocional especializado individual ou em grupos. O trabalho tem como objetivo oferecer apoio aos profissionais da instituição e também pessoas da comunidade, acolhendo, discutindo e oferecendo alternativas para enfrentar os impactos emocionais e psíquicos causados pela pandemia do coronavírus.

O Grupo de Apoio à Saúde Emocional se reúne todas as quintas-feiras e tem orientação de dois psiquiatras. Não é preciso fazer agendamento: basta comparecer ao local do encontro, a partir das 11h, no 3º andar do Bloco Didático da Medicina. O chefe da Unidade de Atenção Psicossocial, Deidvid de Abreu, explica que a iniciativa está baseada em estudos científicos e da Organização Mundial de Saúde (OMS) para ações relativas à saúde emocional dos profissionais em tempos de pandemia. Nos encontros os participantes compartilham sentimentos, expressam dificuldades e experiências relacionadas ao sofrimento emocional no local de trabalho e as consequências para as atividades familiares e sociais e recebem orientações.

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A importância do controle emocional 

Para a enfermeira Zannis Benevides de Andrade, referência do Alojamento Conjunto do HU, a iniciativa foi fundamental para ajudar os profissionais a enfrentarem este momento de pandemia:

— Estamos vivendo um momento de muito estresse, de muita mudança e os profissionais precisam deste serviço de apoio emocional e psicológico.

O técnico em secretariado Gabriel Costa Brito, da CCIH, que buscou atendimento com psicólogo para discutir o impacto emocional de conviver diariamente com profissionais que estão lidando diretamente com o coronavírus também gostou da iniciativa:

— É muito importante para trabalhar o controle emocional diante desta crise toda.

Para o chefe da Unidade de Atenção Psicossocial psiquiatra Deidvid de Abreu, a busca pelo equilíbrio é muito importante para a saúde mental dos trabalhadores:

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— É preciso buscar ajuda, não ficar sozinho, partilhar os sentimentos com alguém próximo ou com um profissional disponível. Manter a saúde mental equilibrada é um caminho necessário em tempos de pandemia.

“Enfermagem sempre foi o alicerce do sistema de saúde”

Há seis anos, Juliana Silveira Bordignon dedica a vida a cuidar da saúde das outras pessoas, como profissional de enfermagem. Atualmente, ela atua em Itajaí, em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) 24 horas referência para atendimentos de pacientes com Covid-19 leve e moderado e estabilização de casos graves.

Na linha de frente de combate ao novo coronavírus, ela relata o medo do desconhecido na rotina dos profissionais da saúde e manda um recado às pessoas que negligenciam a pandemia:

— O mundo precisa de mais empatia e de menos egoísmo.

Confira mais detalhes sobre a rotina de Juliana na entrevista a seguir:

Desde quando você atua como profissional da saúde?

Sou formada há seis anos. Atualmente trabalho em Itajaí, como enfermeira assistencial em uma UPA 24 horas, porte 3, referência para atendimentos de pacientes com Covid-19 leve e moderado e estabilização de casos graves.

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Como é para você estar no front de uma pandemia?

A enfermagem sempre foi o alicerce do sistema de saúde. Em um momento tão importante como esse não seria diferente. Saber que posso fazer a diferença no cuidado à vida das pessoas me serve de combustível para a realização profissional e pessoal.

Qual a maior dificuldade encontrada para você exercer com o máximo dever a sua profissão neste momento?

O medo do desconhecido. Diariamente, trabalhamos e nos atualizamos a fim de exercer o cuidado em Enfermagem baseado em evidências científicas. Porém, o momento é outro, e nem sempre temos a certeza de que as ações que realizamos possuem total eficácia.

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Do que você vivenciou nestes dias o que mais a marcou?

Já era a segunda vez que atendíamos aquela paciente. No primeiro momento ela foi transferida para o hospital. Me contou que no seu segundo dia de internação o esposo dela faleceu por conta da Covid-19. Ela estava em pânico, com muito medo de ser transferida novamente, e isso não ajudava para que os sinais vitais estabilizassem. Para tentar distraí-la de toda a movimentação da sala de emergência, mostrei vídeos do meu cachorro que eu tinha no celular. Foi o primeiro momento em que vi o sorriso dela, que também me contou que os filhos tinham prometido adotar um cãozinho quando ela melhorasse. A segunda transferência ao hospital foi inevitável, mas desejo muito que a saúde tenha melhorado e essa adoção tenha tido sucesso.

Apesar dos números, só aqui em Santa Catarina passam de 500 mortos, ainda tem gente que não acredita nos riscos da pandemia. O que você pode dizer e qual recado passar para estas pessoas?

Muitas pessoas não acreditam porque não tiveram pessoas próximas a si diagnosticadas. Meu desejo é que isso não aconteça e seja necessário para que as pessoas tomem consciência da proporção e dos riscos de uma doença que não escolhe quem acomete. O mundo precisa de mais empatia e de menos egoísmo.

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