Por conta da experiência em desastres que Blumenau viveu em 2008, o Ministério da Saúde, por meio da Política Nacional de Humanização (PNH), convidou profissionais daqui para trabalhar em Santa Maria por uma semana e ajudar na recuperação das pessoas por conta da tragédia na Boate Kiss. Viajaram quatro profissionais: o enfermeiro e coordenador municipal de Saúde Mental, Jorge Fernando Borges de Moraes, e os psicólogos Karina Kaltenbach Ullrich, Suela Bernardes e Antonio Gomes da Rosa.

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Antes da equipe voltar, outro grupo de profissionais blumenauenses viajou para cidade gaúcha para seguir o trabalho. Ontem de manhã, 20 horas depois de retornar, Moraes e Karina contaram ao Santa o que encontraram em Santa Maria.

Jornal de Santa Catarina – Como vocês encontram Santa Maria?

Jorge Fernando Borges de Moraes – Uma cidade em luto. Santa Maria decretou estado de emergência e os estabelecimentos com música estão proibidos de abrir por 30 dias. Isto faz com que as pessoas não tenham onde se relacionar, não prossigam a vida normal. Quanto mais cedo as pessoas retornarem aos locais públicos de convivência, melhor. Eles precisam disso, de convívio e atividades de lazer saudáveis. Encontramos também toda uma organização do município, do estado, do Ministério da Saúde. Uma estrutura de profissionais, que estão atendendo e responderam de forma muito rápida. No Centro de Atenção Psicossocial (Caps) foi montado um centro de apoio para quem precisar.

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Karina Kaltenbach Ullrich – Os profissionais que trabalharam no resgate e em todo o trabalho que veio depois, também precisam de apoio. Até porque se não eles desmoronam. Atendemos muitas pessoas que viveram a tragédia, não sofreram nenhum ferimento mas sentiam culpa. Pensando assim: ‘como posso estar feliz, por minha amiga que não morreu em uma tragédia que matou mais de 200 pessoas?’. Ou mães, que se perguntavam porque não fizeram nada para impedir que os filhos saíssem de casa. E a sociedade como todo: por nunca ter tomado uma providência, exigido fiscalizações e feito algo para evitar a tragédia.

Santa – O que há em comum entre a tragédia que Blumenau viveu em 2008 com o que vocês viram em Santa Maria?

Karina – Aqui as pessoas perderam casas, em Santa Maria, as casas continuam no mesmo lugar. A dinâmica de como cada família funciona é que mudou, nem todas têm todos os integrantes.

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Fernando – E não foram só jovens, filhos. Foram irmãos, pais, trabalhadores, funcionários da boate, provedores de famílias que morreram. São tragédias diferentes: o número de mortos aqui não foi tão grande. Em Santa Maria, o que ocorreu abalou todo o município pela quantidade de vítimas. Os próprios moradores tiveram que ajudar em coisas muito difíceis, como lavar e preparar corpos para os enterros.

Santa – Qual foi o papel da equipe blumenauense lá?

Fernando – Alguns profissionais atenderam no Caps e outros nos serviços de atenção básica. Estávamos trabalhando no acolhimento de familiares, amigos e equipes. Usamos uma tática chamada de estender o cobertor: monitoramos pessoas atingidas, fazemos a acolhida, identificamos quem está se isolando e precisaria de acompanhamento especializado.

Santa – Que dificuldades os profissionais que viveram a tragédia encaram?

Fernando – A equipe percebeu em nós, vindos de fora, a chance de abrir o que estava sentindo. Teve o caso de uma mãe, funcionária da Saúde de Santa Maria, que não perdeu os filhos. No entanto, os filhos dela perderam muitos amigos. Ela precisava ser forte dentro de casa e no trabalho, não podia se manifestar sobre o que sentia. Conosco ela pôde lembrar da vizinha que estava na capa do jornal, das pessoas que reconhecia nos noticiários. Isso deve motivar um trabalho interdisciplinar, para que o município faça com que os serviços de saúde e assistência social se integrem. Esses momentos de crise também oferecem a possibilidade de reorganização.

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Karina – Existe a necessidade de uma equipe multiprofissional. É importante que o centro se dissolva e se continue o trabalho em locais específicos, indo às casas das pessoas desde que elas solicitem o apoio.

Santa – Como superar a tragédia?

Fernando – As pessoas têm uma resiliência, uma capacidade de processar traumas. Cada vez que falam do que viveram, é como se tivessem um peso tirado das costas. E percebem que há como reagir. Mas se não houver uma primeira acolhida, pode virar doença. A pessoa pode escolher não falar sobre a tragédia, entretanto, é preciso haver espaço para falar e ser ouvido. Através dessa escuta, o profissional identifica qual a condição dela para superar o luto.

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Karina – O importante é elaborar o luto. Enquanto fica indizível, a dor não se processa. O silêncio é um indício de que a angústia não foi transformada em palavras. É preciso que as pessoas sigam suas vidas, com a tristeza que é do momento, mas continuem em frente. Porque uma hora, a vida volta ao normal.

Santa – Há como a cidade não ficar marcada pelo o que ocorreu?

Fernando – Não há como.

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Karina – Porque uma vez que virar algo significante, vai virar referência e lembrar que tudo ocorreu.

Fernando – Ainda é muito recente, não faz nem duas semanas. Tem de haver a preocupação de não ficar marcado. No entanto, como há muitos feridos graves, isso vai durar algum tempo. Os próximos 90 dias terão fatos que alimentarão a tragédia. E a partir disso, o luto vai ser elaborado, até o sentimento ser abrandado. Vai demorar um ano, até dois para que passe.

Santa – O que a vivência de Santa Maria pode ensinar a Blumenau?

Fernando – A tragédia está ensinando e pode ensinar os órgãos públicos em fiscalização, prevenção. Se lá foi um evento que reunia mil pessoas, aqui temos a Oktoberfest, que chega a ter 60 mil pessoas em uma noite. É preciso repensar.

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Karina – O lazer precisa acontecer, é preciso ter festa, se não houver alegria é sintoma de que a sociedade está doente. Mas também é preciso ter segurança.

Santa – Qual foi a impressão mais marcante?

Karina – O que muito me chamou a atenção foi a manifestação de sábado, o sétimo dia. A Rua dos Andradas estava lotada e apesar disso, o silêncio pairava no ar. As pessoas estão muito sensibilizadas.

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Fernando – Havia toda uma preocupação de que este manifesto fosse gerar uma guerra. Tanto que foi montada uma estrutura, com Brigada Militar, ambulâncias. E o que aconteceu foi surpreendente: uma manifestação religiosa e aquele silêncio ensurdecedor.