Desde o final da última semana, diversas manifestações de agradecimento ao trabalho dos profissionais de saúde vêm surgindo espontaneamente em várias cidades brasileiras: a população se organiza para, mesmo em isolamento, ir até a sacada do apartamento, ou a janela de casa, e bater palmas para médicos, enfermeiros e outros trabalhadores que estão na linha de frente do combate à pandemia de coronavírus. É uma maneira de demonstrar apoio a quem, ao contrário do que é recomendado à maior parte da população, não pode simplesmente se isolar – e precisa se expor à doença, para auxiliar quem mais necessita.
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—Essas manifestações são muito válidas, porque o profissional de saúde fica quase que à mercê da própria sorte —, comenta Karyne Furlan, enfermeira da família na cidade de São José e professora da Unisul.
— É muito emocionante ver que as pessoas estão tendo empatia. Dá uma força muito grande. Nós não podemos ficar em isolamento: temos que sair para cumprir aquilo que prometemos no dia da nossa formatura. Então, quando as pessoas se manifestam, isso nos dá forças para continuar.
Neste momento tão complicado, é disso que eles mais precisam: força, incentivo e muito foco.
— Eu me sinto bastante estressado —, confessa o médico emergencista Plínio da Silva Oliveira Filho, que atua na região Oeste de Santa Catarina, em cidades como Xanxerê e Ponte Serrada.
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—É como se nós estivéssemos o tempo todo em uma trincheira, esperando o inimigo, só que não conseguimos ver o inimigo. Muitas pessoas ainda não entenderam, mas, pra gente, o que está acontecendo é uma guerra.
Plínio acha que o maior medo de quem trabalha na área da saúde não é contrair a doença e, sim, passar o vírus adiante, para familiares ou outros pacientes.
— Eu moro em Florianópolis; então normalmente trabalho uma, duas semanas aqui, aí volto para Florianópolis, descanso uma semana, volto pra cá. Desta vez não vou fazer isso, porque não quero expor minha namorada, minha família —, ele conta.
— Isso é uma coisa que me incomoda, porque ficar sem ver as pessoas que a gente ama é muito ruim.
O médico narra que alguns colegas estão perdendo o sono pela insegurança a respeito do avanço da pandemia:
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— Não sabemos como vai ser o dia de amanhã – se vai piorar ou não.

Karyne concorda que a ideia de transmitir o vírus para pacientes e conhecidos é o que mais causa temor aos profissionais da saúde – e cita especificamente o caso das médicas e enfermeiras que são mães e estão afastadas de seus filhos por medo de contaminá-los.
— Há mães que estavam amamentando e interromperam o processo de amamentação, e esse vínculo tão importante que se estabelece entre a mãe e o filho nessa fase da vida está sendo quebrado —, diz.
—Isso impacta profundamente a saúde física e mental da profissional. Nós somos seres humanos também, adoecemos também, também precisamos de amparo nesse momento.
Ela atende a demanda de pacientes sintomáticos respiratórios em uma Unidade Básica de Saúde – ou seja, passa o dia todo em contato justamente com os pacientes com sintomas de gripe, como tosse, febre, dor no corpo, dificuldade para respirar. A maioria são casos leves, que então são encaminhados ao isolamento domiciliar por 14 dias; tempo em que ficam em observação, tratando apenas os sintomas: o tratamento fora do ambiente hospitalar evita a possibilidade de levar o contágio a pessoas que estejam internadas por outras causas.
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Os critérios usados para determinar se um paciente pode ser considerado suspeito de infectado por coronavírus são determinados pela Vigilância Epidemiológica – e mudam com o passar dos dias.
— No início, por exemplo, o critério incluía apenas pacientes que houvessem feito viagens internacionais; depois, passou a incluir pacientes que houvessem viajado para locais no Brasil onde houve transmissão comunitária —, explica João Paulo Garibaldi, médico de Família e Comunidade na rede de atenção primária à saúde de Florianópolis.
— Se o paciente fecha critério, nós notificamos a Vigilância Epidemiológica, que faz a coleta para exame com o paciente já em isolamento. Na última semana notificamos sete pacientes que foram atendidos presencialmente e que fechavam critério.
João Paulo relata que, desde o dia 16 de março, o processo de trabalho na unidade em que ele atende, no Rio Tavares, mudou: os pacientes passam por uma triagem antes de entrar no centro de saúde, e, caso tenham sintomas respiratórios, são levados individualmente para uma sala de espera preparada em um dos consultórios. Ali, o paciente recebe uma máscara, é orientado a lavar as mãos e a evitar tocar qualquer objeto, e aguarda atendimento. A sala fica sempre com o ar-condicionado desligado e as janelas abertas, para ventilação. As medidas visam proteger não apenas os profissionais de saúde, mas também os outros pacientes que frequentam o local.
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— Consideramos que todo paciente pode estar infectado —, diz o especialista.

Ao longo da jornada de trabalho, médicos e enfermeiros também usam equipamentos de proteção individual; os chamados EPIs: luvas, aventais, óculos , máscaras. E, nas palavras de Karyne, lavam "incansavelmente" as mãos. Mas é só isso.
—Não temos nenhum recurso especial —, diz a enfermeira.
— Seguimos exatamente os mesmos procedimentos indicados à população de modo geral.
Plínio relata que, dependendo do município, nem mesmo os EPIs são garantidos.
— Às vezes faltam aventais, faltam máscaras, já vi casos em que foi neces sário reutilizar máscaras, o que não deveria ser feito jamais —, o médico afirma.
—E a chance de passar por isso sem ser contaminado é muito pequena: esse vírus é de fácil contágio; não é como o HIV, por exemplo, que só é transmitido por contato sexual ou sanguíneo.
É por saber exatamente como o contágio é fácil que Plínio diz ainda se surpreender com a atitude de certa forma displicente de muitas pessoas.
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— Eu acho que uma parte da população ainda não entendeu a gravidade da situação —, lamenta.
— Estão tratando como se fosse qualquer coisa. Já ouvi de idosos coisas como 'eu já estou no fim da vida, mesmo, então não importa'. Também não há unidade entre as ações do governo federal, estadual, municipal, o que confunde a população.
Ele completa:
— Há muita gente que podia estar em isolamento, e não está porque não quer: gente que age como se fosse férias, vai à praia, não entende que o isolamento é só na própria casa, e não na casa dos amigos, dos parentes… Parece que, enquanto as pessoas não sofrerem as consequências na própria pele, vão continuar suas atividades como se nada estivesse acontecendo.
Plínio cita uma frase que diz ter lido no Facebook na última semana:
— Se as pessoas soubessem o número de respiradores que nós temos disponíveis no Brasil, as ruas estariam às moscas.
Na região da Grande Florianópolis, Karyne afirma já ter notado uma grande diferença no comportamento da população, se compararmos esta semana à semana passada.
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— Vi que a procura no próprio posto diminuiu muito. E essa semana vai ser crucial para o andamento da coisa toda. O que a gente pede das pessoas neste momento é que interrompam a cadeia de transmissão, para que tudo volte ao normal o mais rápido possível, e com o menor prejuízo possível.
O médico João Paulo também viu o movimento na unidade onde trabalha diminuir – muito em função dos procedimentos adotados pela própria equipe:
— Nós cancelamos todos os atendimentos presenciais de rotina. Mantivemos apenas casos bem específicos: gestantes de primeira consulta, gestantes de risco, gestantes em final de gravidez, pacientes com tuberculose, pessoas que vivem com HIV.
O contato com muitos pacientes vem sendo mantido à distância, por meio do telefone ou aplicativos de mensagens.
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— Por ali avaliamos exames, por exemplo, e fazemos bastante renovação de receitas – aliás, receitas de medicamentos de uso contínuo passaram a ser válidas por um ano, não mais apenas por seis meses, o que evita que as pessoas precisem procurar o médico apenas para fazer a renovação —, diz o médico.
Para quem trabalha na área da saúde, a prevenção é tão importante quanto um outro cuidado: aquele voltado à preservação da saúde psicológica em um momento tão delicado.
— Eu tento me manter esperançosa e otimista —, diz a enfermeira Karyne.
— Quando chego em casa, procuro desligar, parar de buscar informações a respeito, porque a pressão é muito grande. De vez em quando a gente precisa desligar um pouquinho e se voltar para uma vida minimamente normal, senão a cabeça não aguenta.
— Todo mundo está chegando em casa exaurido —, relata João Paulo.
— Mas acho que isso acontece com todos, profissionais da saúde ou não: a preocupação drena a energia das pessoas.
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Ele e a equipe adotaram algumas práticas para tentar diminuir a pressão psicológica:
— Começamos a fazer algumas atividades de auto-cuidado em nossas reuniões diárias: reservamos cinco ou dez minutos para fazer uma meditação guiada, um momento de mindfulness, e percebemos que isso faz muita diferença. E estamos tentando manter a descontração em outros momentos: almoçamos ouvindo música; e na última semana comemos um bolo para comemorar dois aniversários da equipe – um, inclusive, foi o meu. [risos].
Plínio diz que o que o motiva é saber que ele pode, de alguma maneira, fazer a diferença. Natural de Santa Maria (RS), ele relata que perdeu muitos amigos no incêndio da boate Kiss, em janeiro de 2013, e que, na época, se sentiu "inútil por não poder fazer nada, impotente por não poder ajudar os sobreviventes".
— Agora eu me sinto melhor em poder fazer alguma coisa. Aqui no interior a estrutura às vezes é muito precária, e a população conta muito com a gente. E eu espero que as pessoas entendam que elas também têm o poder de fazer a diferença nesse momento, ficando em casa. Cada um pode contribuir do seu jeito.