A intervenção artística feita por uma turma de ensino fundamental em uma escola municipal de Rio Negrinho, no Planalto Norte de Santa Catarina, extrapolou os muros do colégio há cerca de uma semana e virou motivo de ofensas e de insegurança aos envolvidos. 

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O professor que coordenou as atividades chegou a deixar a cidade temporariamente, devido à pressão e por receio de ataques, e entrou com representação no Ministério Público (MPSC) na qual solicita a abertura de um procedimento de investigação sobre possível violação de direito de minoria e crime de homofobia: “Estou com medo pela minha integridade física e pelo meu emprego”.

Há quatro meses na Escola Henrique Liebl, contratado como educador temporário, o professor planejou um trabalho para o fim do semestre. Ele sugeriu às três turmas do último ano do ensino fundamental que pensassem num tema para abordar através da arte.

Um dos grupos, então, trabalhou sobre os caminhos, o outro sobre afeto e um deles escolheu a diversidade. Uma escada do colégio foi colorida com as cores do arco-íris pelos alunos do grupo que decidiu explorar a pluralidade. Palavras presentes na sigla LGBTQIA+ também foram coladas no local. A ação ocorreu no dia 15 de julho.

– Eles (alunos) trouxeram o tema e a ideia, compraram os materiais, mediram cada degrau da escada e, no fim, a última palavra colada era “eu sou humano” – conta o educador.

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Antes mesmo de terminada a atividade, o trabalho começou a sofrer críticas. Uma foto tirada enquanto os alunos ainda preparavam a intervenção artística percorreu grupos de aplicativo de mensagem, acompanhada de ameaças, até chegar ao Conselho de Pastores de Rio Negrinho, aumentando a polêmica.

Em vídeo gravado por um pastor da cidade, veio o incentivo ao questionamento da atividade. Na gravação, o pastor afirma que o trabalho, que chamou de “uma campanha de incentivo ao movimento LGBT”, não pode ser feito em uma escola pública e pede que os pais não permitam [aos professores] “doutriná-los [os filhos] dentro da escola à sua ideologia”.

Alunos tinham como objetivo demonstrar que independente do gênero, todos são humanos e devem ser respeitados
Alunos tinham como objetivo demonstrar que independente do gênero, todos são humanos e devem ser respeitados (Foto: Arquivo Pessoal)

Com a repercussão do primeiro vídeo, o presidente do Conselho de Pastores Evangélicos de Rio Negrinho, pastor Ismael Azevedo da Silva, foi até a Câmara de Vereadores, onde sugeriu uma intervenção política dentro da escola, através de um requerimento da casa legislativa do Município.

Segundo o pastor, a busca por esclarecimentos através dos vereadores não foi um “ataque de ódio”, mas uma forma encontrada pelos doutrinadores de evitar possíveis confusões e maior agressividade contra o professor, classificado como um ativista da causa pelos pastores.

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– O melhor é pacificar e nesse sentido que fomos buscar os vereadores. Para pacificiar. Porque conheço pais que podem reagir de outra forma. O nosso maior objetivo não é querer tirar professor, diretora, ao contrário, é preservar eles, porque podem pegar um pai mais explosivo – justifica.

Ainda, segundo o pastor, o primeiro vídeo publicado por um dos religiosos da cidade – e citado acima – não tinha a intenção de agressividade, mas de questionar legalmente se a abordagem da diversidade de gênero pode ser trabalhada numa escola pública.

– O vídeo, talvez, da forma que se fala, parece um ataque, porque quando há contrariedade as pessoas veem também como uma defesa. Mas ele está falando o pensamento cristão, não xingando. É importante que as pessoas compreendam que isso não é discurso de ódio, para nós é um meio de proteção às crianças que às vezes questionam e os pais não sabem nem o que responder – defende o pastor.

O Diário Catarinense teve acesso ao documento assinado pelo vereador Ineir Miguel Mittmann (PSC), o Kbelo, atendento aos pastores. O pedido solicitava mais informações sobre “o objetivo da aula ministrada no dia 15 de julho[…] com abordagem da diversidade de gênero” e seria endereçado à Secretaria de Educação Municipal, caso passasse em votação, o que não ocorreu.

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O requerimento colocado em debate na Câmara de Vereadores solicitava cópia do plano de aula e do diário do professor, informações sobre a idade e a série dos alunos “atingidos” pela atividade e, por fim, “os motivos que levaram a escola a fazer a publicidade da aula em ambiente externo à sala, expondo a temática a todos os alunos, independente de idade”.

Escada era parte da intervenção proposta por grupo que escolheu diversidade como tema
Escada era parte da intervenção proposta por grupo que escolheu diversidade como tema (Foto: Redes Sociais/Divulgação)

A justificativa do pedido falava em “forte preocupação” por um professor “impor o seu pensamento e sua prática de gênero diante de menores inocentes e indefesos”.

– Em momento algum eu quis impor algo, muito pelo contrário, a ideia de abordar o tema surgiu dos próprios alunos. Eles usaram a escada, outra turma usou os corredores, para abordar “caminhos” e uma delas fez a atividade na sala dos professores. Eram intervenções fundamentadas na proposta pedagógica do colégio – afirma o professor à frente das atividades.

Um dia depois de iniciada a repercussão, a direção da escola se posicionou publicamente por meio de nota em que chegou a pedir desculpas “se em algum momento alguém se sentiu ofendido”.

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A mesma nota, publicada nas redes sociais, reforçou que a atividade abordou a liberdade de escolha do ser humano e a expressão corporal: “Esclarecemos que em nenhum momento foi imposto a ideologia aos alunos […] foi uma abordagem de entendimento e escolha às adversidades”, dizia o texto. A reportagem tentou contato com a direção, que preferiu não se manifestar.

Nesta segunda-feira (26), em nova sessão da Câmara de Vereadores de Rio Negrinho, pastores irão fazer uso da tribuna livre, onde anunciaram que devem abordar o tema, mais uma vez.

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Amparo legal

Professor Doutor em Direito e Pesquisador em Gênero e Direitos Humanos, Marcelo Wacheleski explica que a recriminação sofrida pelo professor é uma clara confusão do que se estabeleceu nos últimos anos sobre uma definição que irreal, denominada “ideologia de gênero”.

– Não existe qualquer formulação sobre uma ideologia de gênero, já que a identidade de gênero é constituinte do ser humano. E o que a escola precisa fazer é cumprir o que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Plano Nacional de Educação – explica o especialista.

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De acordo com o doutor em Direito, as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) prevem a erradicação de todas as formas de discriminação e a instituição de políticas de acompanhamento e de monitoramento da vida escolar. A finalidade é, puramente, evitar situações de discriminação, preconceitos ou violências na escola.

– Portanto, o trabalho pedagógico do professor está inserido dentro da Política Nacional de Educação e tem por objetivo estabelecer uma formação cidadã, um aluno capaz de conviver com as diferenças, com a pluralidade e com o respeito dentro de uma sociedade livre e igualitária. Todos esses valores estão inseridos na Constituição Federal de 1988 – comenta.

Ainda, segundo Wacheleski, o professor atuou amparado pelo direito constitucional (CF/88, art. 206, II, III e V) de aprender e de ensinar, cumprindo a missão de habilitar a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão e como profissional, segundo

– Ao contrário dos ataques sofridos. Caso se direcionem ou excedam a liberdade de expressão para atingir parte constituinte de uma população por sua identidade de gênero implicará aos agressores responder pelo crime de racismo, como já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da n. ADO 26/DF – concluiu.

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Presidente da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis, parabenizou os envolvidos por trabalhar o tema, ao explicar que a escola também está cumprindo, ao realizar a atividade sobre diversidade, o artigo 3º da Constituição Federal: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

– O que nós queremos é educar as crianças, os adolescentes e jovens a serem cidadãos. Não queremos transformar absolutamente ninguém em gay, lésbica, trans. Até porque ninguém muda ninguém. A orientação sexual e a identidade de gênero é de cada um. A escola está absolutamente correta de fazer essas ações – salienta Reis.

Ainda de acordo com Reis, ao explorar temas de diversidade a escola ainda tem a garantia de melhora no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), segundo pesquisa realizada em 2016 e coordenada pelo presidente da Aliança.

– As pessoas vão com mais segurança à escola que respeita as diferenças. Na época, coordenei a pesquisa que concluiu que 73% da comunidade LGBTQI+ sofre bullying, 60% se sente inseguro de ir para a escola e 36% apanha. Então, nesse sentido, parabéns à escola, ao professor e aos alunos – conclui Reis, ao se colocar à disposição das vítimas do ataque.

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Abalo emocional e medo

Longe de casa pelo medo de ataques físicos, o professor conta que se abalou pela repercussão negativa, não só pela hostilidade que vem sofrendo, como também, pelo abalo que a turma autora da atividade sentiu:

– É uma turma que tem entre 13 e 14 anos e que viu todo o trabalho por eles preparado ser arrancado, censurado no mesmo dia em que foi feito. Eles estão arrasados – conta o professor, que não só deseja reparação jurídica dos responsáveis pelos ataques, como a reapresentação da atividade.

De acordo com o educador, a retirada do material ocorreu depois que comentários e mensagens contra a atividade, a escola e o professor amedrontaram a direção do colégio.

– Eu sinto muito também pela equipe da escola e até entendo porque o trabalho foi retirado depois de tudo o que se falou, comentários como “caçar professores, caçar escola”. A direção, os professores, todos ficaram bastante abalados – lamenta o professor, que já entrou com pedido de representação no Ministério Público de SC (MP-SC).

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Uma das advogadas que representa o professor, Jéssica Diane Bail explicou que ela e a equipe juntaram provas das violações que o educador vem sofrendo desde 15 de julho, de cunho homofóbico, principalmente com comentários e vídeos.

Com as evidências em mãos, os advogados solicitaram ao MPSC, na última sexta-feira (22), a abertura de um inquérito para apurar as condutas dos envolvidos nos âmbitos criminal e civil. O documento enviado ao órgão de fiscalização denuncia violação de direito de minoria protegida por lei (LGBTQIA+) e crime de homofobia. Até esta segunda (26), o órgão não havia se manifestado sobre o pedido.

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Prefeitura não se posicionou

A reportagem procurou a prefeitura de Rio Negrinho para comentar o caso, através da assessoria de imprensa, e questionou sobre a situação do professor, que teme por seu emprego, mas a administração municipal informou, também em nome da Secretaria de Educação, que prefere não se posicionar sobre o assunto.

A Câmara de Vereadores também foi procurada, por meio da assessoria, e informou que os trabalhos sobre o requerimento ocorreram de forma democrática. O tema foi pauta do dia, passou por discussão e votação. Foram três votos favoráveis à cobrança de explicações através de intervenção dos políticos e cinco contrários.

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Disseminação da pluralidade deve ser incentivada, diz OAB

A Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil de SC (OAB/SC) se posicionou publicamente na tarde desta quinta-feira (22) sobre os ataques iniciados na tarde em que o trabalho começou a ser exposto na escola e disse que é seu papel incentivar e favorecer a disseminação da pluralidade de ideias com vistas ao atingimento da igualdade entre todo o povo.

Em nota, a Comissão disse que “nenhuma sociedade minimamente civilizada pode se desenvolver quando não estão presentes as garantias das liberdades individuais, sejam elas a de expressão, desde que amparadas no respeito às individualidades, e a liberdade de cátedra, que assegura a liberdade de aprendizado, ensino pesquisa e divulgação de conhecimentos que possam ampliar as possibilidades educacionais”.

No seu posicionamento, a OAB afirma que cabe às instituições reconhecerem que o processo de formação escolar se dá somente quando observada e respeitada toda a pluralidade existente em sala de aula e que o exercício dessa liberdade não comporta censura, de modo que não cabe ao Estado, tampouco às pessoas ou instituições, proibir tais manifestações de pensamento, já que totalmente legítimas.

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