“Todos sabemos que o Vaticano, antes mesmo de se configurar como a sede da Igreja Católica, constitui-se, sobretudo, como entidade política. Neste sentido, os gestos de um papa devem ser compreendidos na dimensão dos gestos de um chefe de Estado e não apenas de um líder religioso. E é nesta perspectiva que gostaria de pensar a canonização de João XXIII.
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A pergunta que se coloca é: por que Francisco canonizou João XXIII, mesmo este não tendo preenchido o requisito mínimo para seu reconhecimento como santo pela Igreja Católica? Por que não se aguardou a comprovação de um milagre auferido sob sua intercessão após o processo de beatificação? Suspeito que a resposta seja uma só: a necessidade de o Vaticano posicionar-se ante a atual configuração geopolítica mundial, na qual Estados Unidos e Rússia combatem em torno do leste ucraniano a fim de restabelecer a estabilidade de um mundo bipolar.
O papado de João XXIII notabilizou-se, no âmbito da organização da Igreja, pela convocação do Concílio Vaticano II. Na esfera política, entretanto, destacou-se sua intervenção na crise dos mísseis de 1962, quando a União Soviética, em resposta às instalações militares dos EUA na Turquia, decidiu instalar uma base de lançamento de mísseis em Cuba. À época, João XXIII escreveu a Nikita Kruschev (URSS) e a John Kennedy (EUA), exortando-os ao diálogo e para as consequências de um conflito bélico, bem como usou os microfones da Rádio do Vaticano para lançar um apelo público à paz.
Ao canonizar João XXIII, Francisco busca não apenas um equilíbrio simbólico para a canonização de João Paulo II (tido como conservador, em oposição ao primeiro, reformador), mas principalmente comunica ao mundo a contrariedade da Santa Sé em relação à disputa geopolítica em torno da Ucrânia.“
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