Florianópolis reedita neste fim de semana a manifestação cultural e religiosa mais antiga e popular de sua história: a Procissão do Senhor dos Passos. Organizada pela Irmandade do Senhor dos Passos, o evento reúne diferentes segmentos sociais de todos os recantos da Ilha de Santa Catarina e as principais autoridades estaduais.
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Na sexta-feira, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) entregou o Certificado declarando a Procissão como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Na manhã deste sábado (6) ocorre a Procissão do Carregador, quando os devotos transferem mesas, utensílios e acessórios para a Catedral Metropolitana, onde a imagem ficará até domingo (7), às 16h.
A partir das 20h deste sábado acontece a procissão noturna das imagens cobertas do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores. Essa trasladação tem uma particularidade: as imagens são conduzidas por populares residentes no Morro do Mocotó e maciço do Morro da Cruz.
Os integrantes da Irmandade levam tochas acesas e com os balandraus – pequena capa de cor roxa, usada em todos os eventos religiosos e oficiais da instituição. Os devotos que pagam promessas por graças alcançadas – adultos, jovens e crianças – seguem atrás das imagens com trajes típicos e carregando pequenas cruzes.
A procissão repete todos os anos o mesmo trajeto: desce pela ladeira da Rua Menino Deus, segue pela ruas Bulcão Vianna e João Pinto, entra na Praça XV até chegar no altar da Catedral, onde corais e católicos recebem com cânticos, repetidos há décadas.
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Trajeto histórico pelas ruas do Centro
O momento mais celebrado acontece no domingo, a partir das 16h. A imagem, descoberta, desce da Catedral Metropolitana seguida de um cortejo especial, com o pálio cobrindo o arcebispo Dom Wilson Jönck, conduzido pelas autoridades e personalidades convidadas.
Em outro grupo, protegendo Verônica, pessoas da comunidade representam figuras históricas da Via Crucis como José de Arimatéia, Nicodemus, São João, Maria Mãe, Maria Madalena, Simão Cirineu e os Três Beús.
As mais antigas bandas de música da Ilha costumam colaborar com o cortejo. Neste ano, a presença da Banda da Polícia Militar e da centenária Amor a Arte, executando cânticos fúnebres e religiosos, seguem atrás das imagens, precedendo os pagadores de promessa e devotos.
O trajeto de domingo também é histórico: ruas Tenente Silveira, Deodoro, Mercado, Avenida Paulo Fontes, subindo a Praça XV para o Encontro com Nossa Senhora das Dores, que desce da Rua Padre Miguelinho. Após o sermão do padre Vilson Groh, as duas imagens seguem descendo a Praça XV, entram nas ruas Tiradentes, Bulcão Vianna e Menino Deus até atingir a Capela, para os atos finais.
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Durante o percurso, há várias estações, que representam a Via Crucis, onde Verônica canta uma música de lamento sobre a crucificação e abre um quadro de tecido com a imagem de Cristo.
Hospital é braço de apoio dos devotos
Entre as dezenas de irmandades que se criaram na antiga Desterro, a mais tradicional continua sendo a do Senhor dos Passos. Por duas razões principais: a imagem do crucificado, esculpida pelo artista baiano Francisco das Chagas, de excepcional beleza a revelar o sofrimento humano, e o Hospital de Caridade, de extraordinários serviços prestados à população por 257 anos. A história das duas instituições caminham lado a lado.
De caráter filantrópico desde a fundação, o Imperial Hospital de Caridade é mantido pela Irmandade do Senhor dos Passos. Incontável o número de doentes que procuram tratamento na unidade, cuja marca tem sido da assistência humana e qualificação de corpo médico e de enfermagem.
Quem visita a Capela do Menino Deus e se dirige ao altar na lateral esquerda, onde a imagem do Senhor dos Passos permanece durante todo o ano, encontra uma pequena tribuna com um livro de capa preta, tipo de atas e registro de posses. Ali estão escritos todos os dias depoimentos emocionantes de devotos e de familiares dos pacientes.
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São textos simples, mas de grande significado, como mães apelando pela saúde de filhos, pedindo a cura de doenças, ou a recuperação de familiares drogados. E, na maioria, com agradecimentos por graças alcançadas, pelo sucesso de cirurgias ou tratamento, como também pelo atendimento dos pedidos.
O Hospital de Caridade enfrenta há décadas sérios problemas financeiros, hoje com uma dívida superior a R$ 100 milhões. E, apesar de restrições ditadas pela conjuntura e tabelas defasas do Sistema Único de Saúde (SUS), mantém uma estatística de internar mais de 70% dos pacientes pelo SUS.

A história da procissão e o sinal divino
O caráter milagroso da imagem do Senhor Jesus dos Passos, incorporado pelos devotos e fiéis católicos, tem início em 1764. A bela obra artística destinava-se à cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, vinda de Salvador, na Bahia.
O barco que a transportava fez escala na antiga Desterro para reabastecimento. Quando retomou a viagem, enfrentou terrível tempestade na saída da baia. Voltou ao porto, aguardando que o tempo melhorasse. Quando as condições ficaram boas, a viagem prosseguiu.
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Outra vez, na saída, fortes tempestades impediram o trajeto. O fato repetiu-se três vezes consecutivas. O fenômeno foi interpretado como sinal divino de que a imagem deveria permanecer na Ilha de Santa Catarina.
Em 1766 se realizou a primeira procissão, atividade religiosa praticada nos Açores e originária da Espanha. Historiadores e jornais antigos registram que a imagem era muito mais forte e causava profunda comoção em sua concepção original. A cabeça tinha movimentos, que se repetiam nos olhos, revelando um impressionante realismo.
Capela se salvou de incêndio que destruiu o prédio do Caridade
Há exatamente 25 anos, o Hospital de Caridade foi atingido por um incêndio, o mais pavoroso e destruidor em toda sua história. Estavam internados 184 pacientes, 40 deles em tratamento contra o câncer em situação delicada.
O fogo começou na Ala São Camilo, desativada e transformada em almoxarifado com material inflamável. Destruiu toda a Ala Coração de Jesus, com cenas pavorosas de queda do telhado e uma correria para retirada dos doentes.
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Dois fatos foram registrados sobre a tragédia. O primeiro, a mobilização dos moradores do Morro do Mocotó e imediações, retirando os pacientes e transferindo documentos históricos, cálices, ostensórios e tudo o que estava na Capela, priorizando as imagens do Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores, transferidas para o Ginásio do Sesc.
O segundo está na ata sobre o incêndio: "O quadro é realmente comovente, de uma tristeza indescritível. Ficara o milagre da Capela não ter sido queimada, embora tivesse ficado inteiramente rodeada pelas chamas. O Senhor dos Passos a protegera?"
Testemunhas do ocorrido, dirigentes da irmandade, médicos do hospital e famílias do Mocotó repetem o mesmo depoimento. O fogo consumiu tudo o que estava atrás e nos dois lados da Capela, que ficou inteiramente preservada das chamas.