Ele ficou no carro, paralisado de medo, enquanto homens apontavam fuzis para sua mãe grávida no banco do motorista, ao seu lado. Eles estavam correndo para o aniversário do rei, em parte por terem ouvido falar que havia uma comoção. Era o verão de 1971, e o exército marroquino matou mais de 100 convidados da festa em sua tentativa de derrubar a monarquia. Os homens armados pouparam a mulher grávida e seu filho de sete anos. Mais tarde naquele dia, o golpe fracassou.

Continua depois da publicidade

Com a monarquia preservada, o Rei Hassan II aumentou drasticamente o controle sobre seus súditos, incluindo sua própria família.

Foi uma mudança da qual o menino de sete anos, o Príncipe Moulay Hicham El Alaoui, ainda se lembra bem. Filho mais velho do falecido único irmão de Hassan, Moulay Abdellah, ele é também primo em primeiro grau do Rei Mohammed VI – tornando-o o terceiro na linha de sucessão para o trono marroquino.

Apelidado de “o Príncipe Vermelho”, ele cresceu para se tornar um ativista político cujo apoio público pela democracia o colocou em conflito com sua família no Marrocos. Ele se exilou nos Estados Unidos e foi banido da presença do rei por defender uma monarquia constitucional, como a que existe na Inglaterra ou Espanha.

Numa cultura onde os príncipes devem segurar suas línguas, e onde assuntos de família não deixam os muros do palácio, o Príncipe Moulay Hicham não é bem-vindo.

Continua depois da publicidade

– Foi traumatizante. Eu vi um pai destruído. É um mundo onde tudo é artificial e nada é genuíno-, declarou o príncipe, de 50 anos, durante uma entrevista em seu hotel em Paris. – Estou feliz por viver longe. Em vez de 100 amigos você tem cinco, mas pelo menos sabe que eles estão ali por você-.

Em abril, ele publicou uma nova autobiografia, “Journal d’un Prince Banni”, ou “Diário de um Príncipe Banido”, que tece uma série de vinhetas e histórias para dar aos leitores um raro vislumbre da família real marroquina. Mas serve também como uma dura crítica política do reino, na perspectiva de alguém de dentro.

O livro, que será traduzido para inglês em alguns meses, detalha como Hassan, que morreu em 1999, construiu um sistema de governo opaco onde uma elite podia desrespeitar as leis impunemente. Embora celebre a inegável grandeza do finado rei, Moulay Hicham o descreve como um gênio do mal que colocou Marrocos no palco mundial. Ele também oferece uma visão íntima da vida no interior do palácio, tendo crescido com as intrigas e jogos mentais entre ele e seu tio.

Ele emprega perspicácia para descrever alguns dos episódios mais desconcertantes de seu tio, como o dia, em 1980, em que Hassan fez a Rainha Elizabeth da Inglaterra esperar por ele durante uma hora – querendo mostrar, acreditava-se, que ele era o maior monarca dos dois.

Continua depois da publicidade

Moulay Hicham também fala sobre a humilhação à qual foi submetido, e divide relatos íntimos sobre o alcoolismo de seu pai e a batalha de sua mãe com o uso de drogas.

Quando Mohammed VI herdou o trono, em 1999, ele foi recebido por uma explosão de otimismo que murchou após alguns gestos ineficazes na direção da democracia e direitos humanos.

– Não existe uma exceção marroquina – trata-se de um regime autoritário e nada mais. Após a morte do Rei Hassan, ficou rapidamente evidente para seu filho que a mudança implica em custos e trocas. Ele não estava pronto para fazer sacrifícios, e o regime simplesmente voltou ao que era antes-, afirmou o príncipe.

Em 2011, quando a Primavera Árabe varria do poder autocratas na Tunísia, Egito e Líbia, Mohammed ofereceu reformas constitucionais que garantiam mais igualdade social e atenção aos direitos humanos. Mas Moulay Hicham diz que essas mudanças foram novamente apenas cosméticas, e pediu repetidamente que o reino aplicasse mudanças rápidas. A verdadeira democratização, segundo ele, é a única mudança que pode salvar a monarquia em longo prazo.

Continua depois da publicidade

– O livro é duro porque a realidade é dura -, argumentou Ignace Dalle, autor de “Les Trois Rois” (“Os três reis”), livro sobre a monarquia marroquina. – Moulay Hicham está certo; isso não pode durar para sempre-.

Mohammed foi criticado por seu controle sobre a economia e por realizar uma microgestão do governo eleito.

-Na comitiva de Mohammed VI, não vejo nenhum assessor que lhe diga para seguir em frente. Eles estão absorvidos demais em seus próprios interesses pessoais -, explicou Dalle.

Segundo John Waterbury, estudioso americano e autor de “Commander of the Faithful”, uma extensa análise sobre a política no Marrocos, o livro de Moulay Hicham fornece detalhes íntimos que lançam luz sobre a monarquia e a equipe do rei.

Continua depois da publicidade

Essa tentativa de transparência, disse Waterbury, estava fadada a despertar choque e raiva.

– Em sua militância, Moulay Hicham pega pesado com muitos marroquinos, especialmente os ricos e privilegiados que vivem de aluguéis pagos pelo Makhzen -, acrescentou ele, referindo-se ao termo em árabe para a elite governante. – Sua crítica vem se desenvolvendo há anos. Ela tem sido manifestada tanto em ocasiões familiares – casamentos, aniversários, até mesmo funerais – e em suas opiniões publicadas no “Le Monde Diplomatique” e outros locais-.

-É impossível expor essas intimidades, algumas lisonjeiras e outras altamente críticas, sem desencadear explosões-, afirmou Waterbury. – Mulay Hicham quer grandes mudanças, o tipo de mudança que assustaria qualquer chefe de estado-.

O príncipe, que se formou tanto em Princeton quanto Stanford e é um ex-defensor da paz para a ONU em Kosovo, serve no conselho consultivo do Human Rights Watch e fundou diversos institutos. Um homem de negócios e apaixonado defensor da energia verde, ele também produziu o premiado documentário “A Whisper to a Roar”, sobre a luta por democracia ao redor do mundo.

A política – em especial a direção de seu país – continua no coração de seu ativismo.

– O regime precisará suprir demandas sociais, e não consegue isso porque destrói a própria economia que precisa fomentar. Mas o Makhzen vai acabar percebendo que a crise se deve a suas próprias contradições-, explicou Moulay Hicham.

Continua depois da publicidade

– Os marroquinos também estão numa zona de conforto. Eles desejam mudança, mas não querem passar pelo que a Tunísia e Egito passaram-, afirmou ele.

O príncipe está afastado do atual rei há 20 anos, salvo por alguns raros encontros. Suas filhas, por outro lado, são próximas de Mohammed. Ele declarou que, embora não conheça mais seu primo de verdade, possui boas lembranças de uma infância feliz juntos.

Quando à reação que seu livro causou na mídia marroquina, ele apenas dá de ombros.

– O livro é um best-seller -, respondeu ele com um sorriso e uma piscadela. – Não me sinto intimidado. Se você sobreviveu ao Rei Hassan, o resto é um passeio no parque-.