A maior tragédia do Alto Vale do Itajaí completa um ano neste 17 de dezembro. A enxurrada acompanhada de deslizamentos de terra deixou 18 mortos em Presidente Getúlio, outros dois em Rio do Sul e mais um em Ibirama. Vinte e uma vidas se foram naquela noite de terror.

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Passadas 12 folhas do calendário, as cidades trabalharam duro para se recuperar do dano físico deixado pela força da água, da lama e das pedras que rolaram dos morros. Mas a cicatriz emocional não se fecha tão rápido.

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No bairro Revólver, o mais afetado em Presidente Getúlio, poucos vestígios sobraram nas ruas para lembrar o drama enfrentado pela comunidade local. São muitas casas em obras e quem passa pela primeira vez na região pode até nem perceber o que houve.

Alguns terrenos onde antes estavam casas destruídas ou de onde elas simplesmente foram arrancadas estão vazios. Ferragens retorcidas de um carro e apenas uma cerca na frente de um pátio são hoje os maiores indicativos da tragédia por ali.

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A poucos metros da casa de uma família que perdeu nove integrantes naquela madrugada de terror, a prefeitura de Presidente Getúlio ergue um memorial em homenagem às vidas perdidas na catástrofe. 

Diego é morador do bairro Revólver, conhecia as vítimas e ajudou a construir o memorial
Diego é morador do bairro Revólver, conhecia as vítimas e ajudou a construir o memorial (Foto: Patrick Rodrigues)

Na semana que a perda das vítimas completa um ano, quem trabalhava para deixar a nova praça pronta era Diego José Wippel, 32 anos, vizinho da maioria das pessoas que morreram no temporal em que ele mesmo correu para conseguir escapar vivo.

— Aquele foi o pior dia da minha vida. E hoje construindo isso aqui, fico contente de pelo menos fazer um homenagem para os conhecidos que se foram — diz.

O pedreiro admite não ter escolhido trabalhar na obra do memorial, mas a empresa pediu que ajudasse para tudo ficar pronto a tempo e assim o fez, de bom coração. Neste dia 17 de dezembro, às 17h, um culto ecumênico lembra os pais, mães, irmãos, tios, sobrinhos, avós vitimados na tragédia. 

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Diego mostra na placa onde estão os 18 nomes dos mortos os que ele conhecia, era mais próximo e até quem encontrou sem vida quando o dia amanheceu e o cenário de destruição se revelou.

A saudade só aumenta

A psicóloga da prefeitura de Presidente Getúlio, Janete Kniess, se dedica a atender pacientes que passaram pela tragédia de 2020. No consultório, os relatos são do terror daquele dia, da sensação de impotência diante dos pedidos de socorro, da dor de encontrar parentes e amigos sem vida em meio à lama. 

Quem esteve na cidade naquele período conturbado e volta hoje ao local percebe os semblantes ainda bem abatidos. As lágrimas vêm fácil aos olhos quando se toca no assunto. Não é algo que será superado facilmente, explica Janete. 

— É um processo individual. Cada paciente vai saber como lidar com essa situação, a forma como ele aceita essa perda e a forma como também adere ao tratamento de terapia. Por isso não posso dizer que em um ano vai passar, ou dois, cinco ou 30 anos. Vai de cada pessoa. Porém, o que ouço muito é: eu perdi, mas tenho que continuar vivendo — relata a psicóloga. 

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Valdemar Odorizzi sabe bem disso. Nas palavras dele, sente mais agora a perda da esposa e dos sogros do que lá atrás:

— É cada vez mais difícil. Antes estava naquela luta (para se reerguer). Parece que agora está caindo a ficha.

Em 17 de dezembro de 2020, ele e a esposa estavam deitados quando o temporal começou. A mulher, com quem acabava de completar 33 anos de união, levantaria por volta das 3h da madrugada para ir ao trabalho. Os sogros e a filha estavam nos outros cômodos da casa. Tudo foi muito rápido. Valdemar diz que não deu nem de sentir medo.

Com ajuda da igreja, de amigos, vizinhos e mais um empréstimo no banco, ergueu uma casa nova do zero para seguir a vida. A filha, que hoje estuda para ser técnica de enfermagem, ainda faz acompanhamento psicológico para superar as lembranças. 

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— Vai custar a passar, mas precisamos continuar vivendo — diz Odorizzi. 

Veja abaixo quem eram as vítimas da tragédia em Presidente Getúlio

“Era um porto seguro”

Ruas foram recuperadas, pontes reconstruídas, contenções erguidas, postos de saúde e creches reformados. Grande parte das obras de infraestrutura estão prontas, garante o prefeito Nelson Virtuoso. O principal desafio agora é recuperar a frota, pois 28 carros da saúde foram perdidos e também o maquinário da Secretaria de Obras.

Somadas as perdas do Poder Público e da comunidade, o prejuízo passou de R$ 60 milhões

— Era uma sensação de guerra. Naquele dia a gente imaginou que em dois ou três anos não ia conseguir recuperar. Mas foi feito um trabalho, não só a prefeitura, mas a comunidade veio junto, e demos a volta por cima. Dentro de um ano praticamente não se vê mais nada daquele momento. Foi muito trabalho, ninguém teve férias, todos os servidores ajudaram e por isso conseguimos uma resposta mais rápida. Hoje estão entristecidos pelas vidas perdidas, mas aliviados por conseguir se reerguer — frisa o gestor.  

Apesar da quase normalidade expressa na rotina do dia a dia, medo ainda é palavra recorrente nas falas dos moradores. A maioria dos que vivem vivem no bairro Revólver está ali há décadas, e ninguém recorda um episódio parecido. Com o temporal do fim de 2020, a chuva passou a tirar o sossego de algumas pessoas.

Nilvair Bensi, 60 anos, tinha perdido o marido para a Covid-19 há duas semanas quando uma nova tragédia veio. Naquele dia, enquanto o sol ainda brilhava forte no céu, tratava da venda de alguns animais com um vizinho, que horas mais tarde morreu ao ser arrastado pela força da água. 

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Ela mora ainda mais para cima de onde a casa do amigo foi levada. Conta que o barulho era muito alto, e o desespero tomou conta ao perceber que a residência onde estava com o filho e um neto seria atingida. 

Por sorte, o pior não aconteceu, mas ela decidiu colocar bueiros no entorno da propriedado pensando numa possível nova enxurrada. 

— Era um porto seguro. Agora tenho medo e fico olhando para o céu, para ver se vem outra. A gente pensava que só acontecia nas outras cidades, nunca ninguém pensou nisso aqui — pontua.

Relatos de medo sobre a possibilidade do episódio se repetir são frequentes no consultório das psicológas da prefeitura de Presidente Getúlio, conta Janete Kniess, que atende famílias atingidas.

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— Meus pacientes relatam que quando começa a chover, e principalmente se é à noite, eles não dormem de medo de acontecer tudo de novo, de acordarem e a cama estar balançando, de acordar e botar os pés nas águas, ou acordar sendo carregado. Isso para eles é muito forte ainda, a insegurança — conta.

É possível acontecer novamente? 

O prefeito conta que há poucas semanas uma trovoada forte se armou no céu e percebeu que a comunidade começou a ficar inqueita, temerosa de um replay

A estrutura da Defesa Civil de Presidente Getúlio segue a mesma de um ano atrás, com apenas uma pessoa. Na época da tragédia, equipes de geologia da Defesa Civil de Blumenau estiveram na cidade para auxiliar no mapeamento da região. 

Segundo o gestor, algumas rachaduras foram percebidas pelos técnicos nos morros e têm sido monitoradas por engenheiros de carreira do município. De acordo com Nelson Virtuoso, nenhuma área foi interditada e não houve novos deslizamentos.

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> Radar de Lontras desligado e dificuldades na comunicação impediram alerta a Presidente Getúlio

Frederico de Morais Rudorff, coordenador de Monitoramento e Alerta da Defesa Civil de Santa Catarina, diz que aquele episódio que atingiu parte do Alto Vale do Itajaí no fim do ano passado é considerado muito raro, mas que já afetou, sim, a região décadas atrás. 

O que ocorre, segundo ele, é que na época não tinha o volume populacional de agora, por isso a proporção da tragédia. Outro aspecto apontado é a proximidade das casas do curso do rio, o que acabou ampliando o desastre retratado nas fotos abaixo.

Rudorff aponta que passado um ano, a Defesa Civil estadual aprimorou os modelos meteorológicos para detectar com mais precisão episódios como aquele. Na época, a região estava em risco moderado para temporal e, nas próprias palavras do coordenador, os dados do radar do Morro da Igreja subestimaram a chuva prevista. 

Ainda assim, a Defesa Civil de SC garante que a comunidade cadastrada junto ao órgão recebeu SMS com alerta, mas acredita-se que por ser a noite muitos não chegaram a ver. O problema não seria apenas esse, mas também o que as pessoas fariam com aquela informação, já que não tinham sido orientados sobre como proceder. 

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Este é o grande desafio, na visão de Rudorff, e deve ser trabalhado dentro das cidades, para que os moradores criem o hábito de acompanhar os alertas e entender o que fazer conforme os estágios de perigo.

— O que a gente tem buscado incentivar muito é as pessoas se habituarem a acompanhar os avisos meteorológicos, que são informações que a gente consegue medir com até três dias de antecedência e vai subindo gradativamente do nível amarelo, para laranja e vermelho. E assim vamos intensificando a mobilização e divulgação de informações — explica. 

Gratidão

Tristeza e medo não são os únicos sentimentos da comunidade do bairro Revólver. Gratidão também se faz presente e é constante, pela vida e pela ajuda para recomeçar. 

Ilmo Schiodine olha da varanda da casa onde mora de favor a construção do memorial. O aposentado teve o lar destruído no dia 17 de dezembro de 2020 e ainda não terminou a obra de reconstrução. Enquanto isso não precisa pagar aluguel porque o irmão lhe estendeu a mão. 

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Mas não foi o único. O aposentado conta que igrejas da comunidade doaram tijolos, cimento, ferro e até uma quantidade em dinheiro para as famílias atingidas reeguerem as casas. A dele, se tudo correr bem, fica pronta no começo do ano que vem.

— É triste pelas pessoas que morreram, mas a gente precisa continuar — analisa. 

Perto dali, na casa de Alcídio e Ireni Oliani, até uma decoração de Natal foi colocada. Luzes, pinheirinhos e guirlandas não estão tão presentes quanto no ano passado e a aposentada explica o motivo.

Ela havia enfeitado tudo antes da tragédia e agora não se sente totalmente a vontade para refazer o trabalho tendo como cenário em volta vários terrenos vazios de onde casas foram arrancadas e famílias inteiras morreram.

Alcídio e Ireni tentam retomar a vida em meio ao cenário de perdas. Ao fundo é possível observar a casa onde um casal morreu
Alcídio e Ireni tentam retomar a vida em meio ao cenário de perdas. Ao fundo é possível observar a casa onde um casal morreu (Foto: Patrick Rodrigues)

Irene e o marido enchem os olhos de lágrimas ao lembrar da tarde que antecedeu as mortes, quando pai e filho brincavam correndo na rua e horas depois perderam a vida. 

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Mas a tristeza e a saudade não podem dominar, eles sabem. Estão sendo amparados pela neta, psicóloga. Foi aí, com a ajuda da família, que resolveram colocar os pisca-pisca do lado de fora. A força vem também de quem estendeu a mão financeiramente e da fé em Deus. 

— O filho de um casal para quem eu trabalhei lembrou de mim e veio aqui oferecer ajuda. A minha filha também fala que a gente tem de agradecer, porque o maior presente dela é a gente estar vivo — conta Ireni. 

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