*Por Ernesto Londoño e Mariana Simões
Rio de Janeiro – O coronavírus começava a chegar à América Latina quando o presidente Jair Bolsonaro assustou a comunidade médica com uma afirmação: havia uma droga milagrosa.
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“Deus é brasileiro, a cura está bem aqui. A cloroquina está funcionando em todos os lugares!”, exclamou o presidente no fim de março a uma multidão de apoiadores.
Desde então, o vírus tomou conta da nação. Mais de 41 mil pessoas morreram – o Brasil já passou à frente do Reino Unido e registrou mais mortes do que qualquer outro país que não os Estados Unidos – e o número diário de óbitos é hoje o mais alto do mundo, contrariando a tendência de queda que está permitindo a reabertura de outras grandes economias.
Especialistas apontam a rejeição de Bolsonaro ao consenso científico sobre como combater a pandemia – incluindo sua promoção de remédios não comprovados, como a cloroquina e a hidroxicloroquina – como um dos fatores que ajudaram a levar o país à sua atual crise de saúde.
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Bolsonaro ordenou que as forças armadas produzissem o medicamento em massa no laboratório farmacêutico militar, e encomendou um grande fornecimento dos ingredientes da droga à Índia.
“As decisões estão sendo tomadas não com base em evidências e dados empíricos, mas sim em observações ocasionais. Bolsonaro investiu uma enorme quantidade de dinheiro em uma ação que não se mostrou efetiva em detrimento do aumento dos testes e do rastreamento de contatos”, disse Denise Garrett, epidemiologista brasileira-americana que trabalhou no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) por mais de 20 anos.
Entre fevereiro, quando o Brasil identificou seu primeiro caso de coronavírus, e junho, quando o número de casos ultrapassou 828 mil, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, o país teve meses para aprender com outras nações que haviam sido devastadas pelo vírus e se preparar para a pandemia.

Em vez disso, Bolsonaro levou o país para o que especialistas em saúde chamam de caminho perigoso: sabotou medidas de quarentena adotadas pelos governadores, incentivou comícios em massa e repetidamente descartou o perigo do vírus, afirmando que era uma “gripezinha” e que pessoas com “histórico de atleta”, como ele, eram imunes a complicações graves.
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Recentemente, o governo Bolsonaro deixou de divulgar estatísticas abrangentes do coronavírus, deixando os brasileiros sem uma contagem oficial que mostrasse a trajetória e o alcance do surto. O ministério retomou a divulgação dos dados depois de uma ordem do Supremo Tribunal Federal.
Em seu mandato, decisões sobre protocolos médicos e científicos se tornaram medidas de lealdade política. Com o agravamento da crise do coronavírus, Bolsonaro se apoiou no Ministério da Saúde para adotar o uso generalizado de cloroquina e hidroxicloroquina, dificultando sua relação com os dois médicos que atuaram como ministros da Saúde. Um foi demitido em abril e o outro durou menos de um mês no cargo.
Seu sucessor, um general da ativa sem experiência médica, concordou em emitir orientações encorajando os médicos a prescrever a droga amplamente para pacientes de Covid-19.
A cloroquina e a hidroxicloroquina são drogas para o tratamento da malária, mas têm usos secundários distintos; a hidroxicloroquina também trata lúpus e artrite reumatoide. Ambos os medicamentos são fármacos que estão sendo estudados como potenciais remédios para a Covid-19, mas nenhum medicamento foi aprovado como um tratamento confiável.
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A Administração de Alimentos e Drogas dos EUA alertou contra o uso dos dois medicamentos em pacientes com Covid-19 fora das instalações hospitalares, porque podem causar problemas cardíacos.
Margareth Dalcolmo, proeminente pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, agência governamental que faz pesquisas em saúde no Rio de Janeiro, afirmou que o uso da droga no Brasil estabeleceu um precedente perigoso – e está dificultando a pesquisa necessária. “Hoje, a cloroquina se tornou uma panaceia política, o que é prejudicial para a ciência. O que temos, na minha opinião, é uma infeliz politização dos fármacos”, disse ela em entrevista.
A controvérsia sobre a hidroxicloroquina também existiu fora do Brasil.
Em meados de maio, o presidente Donald Trump declarou que havia começado a tomar a droga como medida preventiva, o que gerou consternação entre os médicos.

No fim daquele mês, a Casa Branca anunciou que estava doando dois milhões de doses da droga para o Brasil para que pudesse ser usada “para tratar brasileiros que se infectam”.
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O deputado Eliot Engel, democrata de Nova York que preside o Comitê de Relações Exteriores da Câmara, chamou essa decisão de terrível. “É uma irresponsabilidade por parte do presidente Trump e de Jair Bolsonaro colocar a política acima da ciência”, disse ele em um comunicado no Twitter.
No Brasil, a batalha contra a hidroxicloroquina começou em março, quando os médicos se preparavam para uma leva de pacientes e testavam uma variedade de medicamentos baseados em protocolos de tratamento que se mostraram promissores em outros países.
Marcelo Kalichsztein, proeminente pneumologista do Rio de Janeiro, começou a prescrever hidroxicloroquina para pacientes com coronavírus logo após surgirem os sintomas, juntamente com o antibiótico azitromicina e um suplemento de zinco. Assim o fez depois de ler a pesquisa do microbiologista francês Didier Raoult, que ele achou persuasiva. Mas a pesquisa de Raoult foi desacreditada, e o grupo científico que a publicou afirmou mais tarde que o artigo não havia correspondido a seus padrões. “Essa é uma doença nova e não temos uma bala de prata. Todos nós estávamos procurando um medicamento que pudesse parar o vírus no primeiro estágio”, declarou Kalichsztein.
Kalichsztein, que contraiu o vírus no início de abril e tomou hidroxicloroquina, disse que o tratamento tinha sido eficaz para evitar que a doença chegasse a um estágio inflamatório entre mais de cem pacientes cujos cuidados ele supervisionava.
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Os médicos começaram a compartilhar suas experiências com a droga e dicas de como mitigar o risco de complicações cardíacas em reuniões do Zoom e chats em grupo no WhatsApp.
Enquanto essas discussões se realizavam em particular, Nise Yamaguchi, imunologista e oncologista de São Paulo, surgiu como grande defensora da droga, argumentando em entrevistas de televisão que o medicamento tinha o potencial de evitar que os pacientes adoecessem a ponto de exigir internação.

Yamaguchi, que chamou a atenção de Bolsonaro e foi convocada para se encontrar com ele, garantiu que nunca teve a intenção de se envolver no acalorado debate político que ampliou a polarização do Brasil.
“Médicos e cientistas que atuam com base em pesquisas acadêmicas não podem se permitir ser guiados por questões políticas, já que a saúde do paciente é primordial”, disse ela em um e-mail.
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Mas, em meados de abril, a hidroxicloroquina se tornou uma espécie de teste entre os brasileiros que reverenciam ou detestam o presidente de extrema-direita, que investiu muito capital político – e fundos públicos – na droga.
O pesado debate político em torno do uso da droga pode interferir nos testes em andamento, observou Garrett, a ex-especialista do CDC. “Ou os voluntários não vão querer fazer parte disso porque estão contaminados pelo debate político ou os que farão parte dele podem estar fazendo isso impulsionados pela ideologia política. E isso seria muito ruim para a saúde pública”, afirmou ela.
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