Exemplares de uma das cinematografias mais festejadas do mundo atualmente, os filmes sul-coreanos vêm ganhando prêmios nos principais festivais nos últimos anos. Por coincidência, dois dos longas mais premiados dessa produção estreiam nos cinemas de Porto Alegre nesta sexta-feira. Hahaha, de Hong Sang-soo, e Pietá, de Kim Ki-duk, são representantes de duas vertentes bem distintas do cinema sul-coreano. O primeiro, vencedor da principal mostra paralela do Festival de Cannes de 2010 (Um Certo Olhar), é uma comédia dramática sobre os encontros e desencontros de dois jovens amigos na Seul atual. O controvertido Pietá, Leão de Ouro de melhor filme do Festival de Veneza do ano passado, é um drama social que aborda a violência nos centros urbanos de maneira absolutamente crua. Confira, abaixo, as críticas de ambos:
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Hahaha, por Marcelo Perrone | marcelo.perrone@zerohora.com.br
Reverenciado como um dos grandes nomes do cinema oriental, Hong Sang-soo costuma ser apresentado nas mostras e festivais que exibem seus filmes às plateias ocidentais como uma espécie de nêmesis sul-coreano de Woody Allen. Quem assistir a Hahaha pode achar que a referência força um tanto a barra, mas faz sentido dentre algumas características comuns perceptíveis no oceano das diferenças geográficas e culturais que separam os dois diretores.
Hahaha é o primeiro filme de Sang-soo a ter lançamento no circuito comercial da Capital – o prolífico autor já fez mais quatro longas depois deste. Além do ritmo intenso de sua produção, o sul-coreano se aproxima de Woody Allen em características como trabalhar com um mesmo time de atores (com Sang-soo ele se repetem com mais frequência) e investir na verborragia para dissecar os encontros e desencontros das relações afetivas, falatório esse sempre embebido em sexo e conduzido por tipos recorrentes como escritores ou cineastas em crise existencial.
O “Hahaha” do título pode sugerir um humor e uma simplicidade que, verá o espectador, não são assim tão evidentes para um filme classificado no gênero comédia. Isso advém da forma engenhosa com que o diretor apresenta a história: a rigor, o protagonista é Jo (Kim Sang-kyung ), cineasta frustrado que se encontra com um velho amigo, Bang (Yu Junsang), para se despedir – está partindo para trabalhar no Canadá.
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O papo na mesa do bar (cenas apresentadas em fotografias em preto e branco) conduz a narrativa em flashback, em que Jo lembra uma traumática experiência amorosa que viveu no passado na cidade onde cresceu com Bang. A voz de Bang entra em cena para guiar suas próprias lembranças de episódios que, por vezes, se embaralham com os do amigo, oferecendo um outro ponto de vista sobre os mesmos personagens lembrados, recurso inventivo que exige atenção e se mostra no desenrolar da trama tão complexo quanto surpreendente. Grosso modo, é filme que até pode ser enquadrado na categoria comédia, mas de um tipo peculiar, que pede um espírito livre das expectativas do riso fácil para embarcar na viagem.
Pietá, por Daniel Feix | daniel.feix@zerohora.com.br
Se Hahaha, assim como os outros filmes de seu diretor, Hong Sang-soo, representa a parcela cômica do pungente cinema coreano contemporâneo, Pietá se filia às produções que têm a violência e a vingança como seus eixos dramáticos. Inclua-se, aí, a célebre Trilogia da Vingança de Park Chan-wook, da qual faz parte o novo clássico Oldboy (2003).
Pietá é ainda mais contraditório em sua sugestão das origens da violência no âmbito social. Com sequências de uma crueldade radical, narra a vida de um sujeito na faixa dos 30 anos (Lee Jung-jin) que atua como cobrador para um agiota. Sugerindo explicitamente que a obsessão pelo dinheiro já nos fez perder qualquer noção de limite, o diretor Kim Ki-duk põe seu protagonista a mutilar clientes que não pagam seus empréstimos – para que assim se tornem inválidos e possam resgatar a bolada de seu seguro trabalhista.
Se você aguentar a brutalidade do início, talvez se irrite definitivamente quando entra em cena uma mulher que se diz mãe do personagem principal (Jo Min-su). É que, ali, Pietá ganha ares de psicologismo barato: cheia de lições de moral, declarando-se culpada pelos atos do filho, já que o abandonou quando criança, ela volta querendo um reinício ao lado dele.
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Quando parece que o filme vai desandar de vez, já que o coração do protagonista de fato amolece e ele, veja só, já não é mais tão cruel, eis que Ki-duk promove surpresas que fazem Pietá crescer. A começar por uma reversão de expectativas para quem por acaso esperava referências mais explícitas à imagem católica da Virgem Maria com Jesus em seus braços após a crucificação (a “pietá” do título, imortalizada por Michelangelo e tantos outros artistas).
No Festival de Veneza, parte da crítica chegou a comparar a surpreendente ciranda de culpa e vingança no seio familiar, que ganha fôlego a partir da metade final do longa, às tragédias gregas. Faz sentido, ainda que seja com base em premissas um tanto óbvias (o anticapitalismo e a orfandade de seu protagonista) que a dramaturgia de Pietá se estruture.
Na comparação com seus melhores trabalhos, A Casa Vazia (2004) e Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera (2003), o novo e premiado longa-metragem é mais ousado, mas também menos eficiente.