São poucos os cineastas que conseguem aliar erudição e virtuosismo técnico como o russo Alexandr Sokurov. Fausto, em cartaz a partir desta sexta-feira no Guion Center e a partir de sábado no Espaço Itaú, em Porto Alegre, é um filme difícil porém capaz de deixar o espectador de queixo caído diante de sua sofisticação.

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Livre adaptação do afamado poema trágico de Goethe, que por sua vez já criara seu Fausto inspirado na lenda medieval do médico que vendeu a alma ao diabo, o longa encerra a chamada Tetralogia do Poder, concebida por Sokurov em paralelo a projetos da potência de Arca Russa (2002). É o único título desta tetralogia que busca inspiração na ficção – Moloch (1999) versava sobre Adolf Hitler, Taurus (2001), sobre Lênin, e O Sol (2005), sobre o imperador japonês Hirohito.

Faz sentido: a fábula do cientista descrente que se sujeita aos desmandos de Mefistófeles em troca das satisfações mais mundanas pode ser interpretada como a derrocada do homem diante de sua busca desmesurada pelo poder. Fausto dá transcendência e, consequentemente, reforça o sentido de permanência do tratado sokuroviano sobre a incapacidade humana de lidar com as suas ambições, tratado este já bem estruturado em sua porção “real” sobre o trio de todo-poderosos do século 20.

É importante deixar claro, se você está disposto a encarar as duas horas e 14 minutos de deleite de Fausto: a tela permanece quadrada, com seus cantos arredondados, durante toda a trama, e algumas imagens representativas do pesadelo moral do protagonista aparecem distorcidas, esticadas. A ideia é remeter a fotos antigas que podem ser associadas a uma época passada e, ao mesmo tempo, conduzir o espectador a um mundo imaginário sombrio e fantástico. O objetivo é plenamente alcançado graças à extensa pesquisa iconográfica de Sokurov, que resultou numa aproximação visual de pinturas de Vermeer e Rembrandt, entre outros, e numa fotografia brilhantemente concebida por Bruno Delbonnel (de Amélie Poulain e Across the Universe), com sua paleta filtrada em tons de cinza, sépia e verdes lavados.

Se em sua fuga do realismo o cineasta aproximou o filme do tempo em que a lenda do Dr. Fausto se afirmou, as licenças dramáticas o conduzem à modernidade. Mefistófeles, ou Mefisto, a encarnação do demônio (interpretado pelo russo Anton Adasinsky), ganhou um visual mutante a la Cronenberg. E uma esposa, vivida pela atriz alemã Hanna Schygulla, musa de Fassbinder. Mais do que isso, Sokurov fez de seu diabo um comerciante e agiota, relacionando-o ao sistema financeiro que tantos males causou à convivência social ao longo dos anos, mas, mais intensamente, a partir da afirmação do capitalismo no século 20.

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Já Fausto (o ator alemão Johannes Zeiler), além de um materialista desiludido (“Procurei por todo o corpo e não vejo onde fica a alma humana”, diz o médico na sequência inicial, ao dissecar um cadáver), ganhou um aspecto preguiçoso e conformista. Só assina o contrato que determina a venda de sua alma a Mefisto porque não tem mais fé na ciência e, tampouco, disposição para suplantar problemas e inimigos, nem mesmo para conquistar a delicada Margarete (a russa Isolda Dychauk, de 19 anos), bela como uma modelo de Vermeer.

Não é uma reflexão lateral, ao contrário. O assunto central deste mais recente Sokurov é o estado de letargia que abateu o homem contemporâneo. Não se trata exatamente de atualizar a lenda, mas de ressaltar o quanto as pessoas, hoje, transformaram-se em Fausto, o sujeito que, depois de perder a fé, também deixou de lado a razão.