Há 29 anos como magistrada, Andréa Pachá viu de quase tudo nas audiências em que participou. Mas foi fora delas, especificamente na dramaturgia, filosofia e psicanálise que a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) encontrou sensibilidade para a profissão. Autora de três livros de crônicas extraídos do observar nos tribunais, a juíza que já foi roteirista e produtora de teatro transportou para a escrita as contradições humanas e aflições que enxergou por trás dos processos que foi responsável.

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Defensora da escuta especializada dentro dos tribunais, Andréa afirma que não dá para conviver com nenhum tipo de violência, inclusive com aquelas que ocorrem dentro de instituições, e confirma que “para ser juiz tem que gostar de pessoas”. Defende, também, que a imprensa é “aliada fundamental na visibilidade” das violências.

Sobre o caso da menina de 11 anos que foi estuprada e teve o direito ao aborto legal negado em Santa Catarina, a magistrada entende não ser fato isolado a “sucessão de descaminhos e de tristezas” que a vítima encarou. Depois que o caso foi parar na Justiça, a decisão e trechos de uma audiência do processo em que a juíza e promotora questionam a criança se ela suportaria ficar mais tempo com a gestação foram revelados em uma reportagem dos sites Portal Catarinas e The Intercept. 

Leia a entrevista na íntegra

A sua formação humanística do teatro e de roteiro contribuiu para a magistratura de qual forma?

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Andréa Pachá: Com certeza. Eu não consigo nem imaginar que tipo de juíza eu seria sem essa formação. É um exercício de austeridade, é um exercício de compreensão do país que a gente vive, da desigualdade. Então, foi nesse ambiente que eu tive essa formação. Depois, quando eu voltei para magistratura – quando eu publiquei três livros que são livros de crônicas e de ficção falando um pouco da experiência que eu tive nas áreas de famílias e sucessões -, foi uma forma de devolver para o ambiente da cultura e da arte tudo que eu tinha ganho nela lá trás.

A senhora usou bastante dessa formação dentro da dentro das audiências?

Com certeza. Tem algumas contradições humanas, alguns comportamentos que você pode estudar a técnica, é importante que você estude na formação jurídica, que você tenha a consistência na formação, mas é muito importante a percepção da nossa condição humana. E muitas vezes isso aparece muito mais na leitura de texto de teatro ou num livro, num romance, num cinema, porque são linguagens que têm a mesma raiz, que é a raiz da humanidade. Então, poder integrar esses saberes têm sido uma experiência muito, muito rica no exercício da minha profissão.

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A senhora acha que se não fosse essa formação humanística, algumas pequenas injustiças poderiam ter acontecido dentro da sua história?

Eu acho que se eu não tivesse uma preocupação que nasce dessa formação que eu tive de olhar diferente para as pessoas, é possível que muitas vezes, e olha eu acredito que eu tenha errado muitas vezes, porque claro que a gente também erra no exercício da profissão, mas é possível que eu não tivesse ficado tão atenta para ouvir a escuta e a forma de olhar para aqueles que chegam na Justiça. Foi um exercício que nasceu muito dessa formação da ficção e da dramaturgia, da filosofia, da psicanálise. A rotina de um juiz é muito difícil, você trabalha com volume de processos muito grande. Se você não está atento o tempo todo para enxergar que atrás daqueles processos tem gente, você acaba se transformando numa ferramenta burocrática. E é tudo que não se deve fazer na magistratura. Eu, quando falo com os juízes que começam na carreira no curso de iniciação, quando eu dou aula na escola, a primeira coisa que eu digo para todos eles é que quem não gosta de gente não pode ser juiz. Nós trabalhamos com pessoas, não com processos. Atrás de cada processo tem uma história, tem uma vida, tem uma ansiedade, e tem pessoas que não estão ali porque querem, mas porque precisam. E todos os dias, nesses quase 30 anos de profissão, eu acordo e faço um exercício, digo “eu não posso perder a sensibilidade”, porque senão eu não consigo trabalhar.

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Muito do que a senhora falou também tem a ver com aquela iniciativa de escuta sensível dentro das audiências, certo?

Você hoje tem ambientes de escuta especial de mulheres vítimas de violência, de crianças, de grupos mais vulneráveis exatamente para que você não transforme aqueles casos que são tão dramáticos e tão intensos em mais um caso que você tem para julgar. Então, tem profissionais habilitados para essa escuta, você conta com equipes de psicólogos, assistentes sociais e, sempre que possível, tento usar esse suporte na Vara da Família.

Essa escuta, no caso da daquela questão do aborto que aconteceu em Santa Catarina, foi na vara da infância e da juventude…

Ali tinha duas questões: você tinha um pedido de prática do aborto para o aborto poder ser feito, já que já havia passado das semanas iniciais. Quem decide essa matéria é o juiz da Vara Criminal. E você tinha, em paralelo, o acolhimento da menina que saiu do ambiente familiar, porque se entendeu que ela corria risco no ambiente. Então, o que se assistiu, quer dizer, aquela exibição que foi vazada para a rede e que indignou a todo mundo, porque ficou tudo muito comovido com o que via, aquilo aconteceu no ambiente da Vara da Infância, que é uma vara de proteção.

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Dentro dos limites legais [sobre se manifestar sobre o caso], o que aconteceu ali naquela audiência? Faltou escuta especial, faltou conhecimento sobre a legislação, até por parte da magistrada, o que a senhora pode falar?

Eu não tenho como avaliar a conduta das profissionais naquele ambiente e naquele episódio por uma limitação que eu tenho que é legal, mas o que eu posso dizer para você é que quando uma criança é acolhida no ambiente institucional o que ela precisa é de cuidado, o que ela precisa é de proteção, o que ela precisa é de profissionais que consigam traduzir para o processo o que aquela menina está sentindo. Então, a forma com que se aborda uma gravidez de uma criança de 11 anos, como se ela tivesse autonomia, independência, liberdade para decidir, foi o que mais chocou todo mundo. Era uma criança e ela era vítima. Então, ali, quer dizer, ela estava acolhida em tese para ser protegida da família, mas ela, sendo ouvida para falar sobre a gestação, gestação que foi decorrente de um estupro, e de um aborto que ela já deveria ter feito quando procurou o hospital. Então, é uma sucessão de descaminhos e de tristezas que essa menina encarou. E não foi a primeira vez que isso aconteceu. Você vai lembrar que recentemente uma menina do Espírito Santo precisou viajar até Recife para ter garantia do direito ao aborto legal. Menina também de 10 anos que não conseguiu realizar o aborto na rede pública do Estado onde ela vivia. Se cria uma série de empecilhos que a lei não exige, não estão na lei. Ela [a criança] tem direito de acolhimento. Então, essa violência que nega o direito é uma violência institucional. E é nesse sentido que isso precisa ser pensado. Como é que nós que integramos as instituições estamos lidando com essa sucessão de violências praticadas contra as meninas e contra as mulheres? O que está faltando nessa rede de proteção? Porque ali, quando você pensa na história concreta, é claro que aqui a indignação é de tal ordem que todo mundo precisa procurar um culpado, precisa ter alguém que seja culpado. O que você vê nesses casos são furos na rede de proteção. A rede familiar não foi suficiente para proteger. Ela foi estuprada dentro de casa. Ela demorou a procurar um hospital para realizar um aborto ao qual ela tinha direito. Quer dizer, faltou a rede de informação para dizer quais eram os direitos que ela tinha. Provavelmente, não é ela apenas a parte vulnerável dessa família, a família inteira é vulnerável. Então, chega no hospital não tem o acolhimento, ela é levada para uma instituição e isso só vem a público com vazamento de uma audiência. Isso mostra o quanto essa rede é frágil, o quanto a gente precisa se aparelhar melhor para proteger e acolher as meninas que são vítimas de violência, que infelizmente são muitas.

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E qual é o papel do judiciário nesse momento?

O papel do judiciário é garantir a efetividade do direito. É garantir que, se ela [a criança] viva ou vivesse num ambiente no qual ela estava correndo risco, a orientação era de fato tirá-la desse ambiente de risco para que ela não sofresse mais violência. Se a intervenção que ela precisava era de ter garantido um aborto legal, porque ela foi vítima de estupro, esse era o papel do judiciário, garantir o aborto legal num tempo adequado para que ela não sofresse com uma gestação resultado de um crime. E esse é o papel, garantir a efetividade dos direitos. O judiciário funciona, é por meio de pedidos. Você tem advogado, você tem o Ministério Público, você tem a defensoria pública que leva as demandas à Justiça. Então, quando provocado, no momento da proteção, o que o judiciário tem que fazer é garantir o direito das crianças e dos adolescentes, especialmente das meninas que são vítimas de violência.

Esse episódio faz a gente pensar em como melhorar. Daqui pra frente, o que é preciso fazer de maneira prática, o que a gente tira deste episódio?

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A gente precisa melhorar por meio de informação. Informação e visibilidade do que acontece de errado para que não seja repetido. Então, se você tem garantido às crianças e aos adolescentes uma formação em educação sexual adequada nas escolas, essa criança consegue identificar a violência e consegue levar para a escola essa demanda. Se você tem professores na escola que têm formação adequada para lidar com a violência, elas sabem quais são os canais que devem ser procurados. Ou por meio dos conselhos tutelares, ou por meio do Ministério Público, da Justiça. Se esses canais estão obstruídos e seus direitos são negados, elas sabem que devem procurar um recurso, que devem procurar a imprensa que tem sido uma aliada fundamental na visibilidade da violência, inclusive da violência institucional. São muitas camadas de violência e muitas camadas de informação. Não existe uma fórmula mágica. Infelizmente, não é esse cenário, mas precisamos mais do que nunca dar voz a quem sofre violência e dar visibilidade aos caminhos possíveis para enfrentá-la. Quem tem que ficar constrangido é quem pratica violência, não quem é vítima. Mesmo que a pessoa se sinta sozinha e sinta que vai ser desqualificada no ambiente institucional quando busca uma denúncia, ela precisa buscar esse caminho. A gente só consegue mudar o quadro por meio da informação, da educação e da existência desse cuidado que é feito em rede. Não tem uma instituição só que resolve, mas você precisa conversar por meio de todas essas instituições e da sociedade, que também é uma parte fundamental desse processo. A violência só existe, e a violência contra a mulher e as meninas só existe, porque de alguma forma nós vivemos numa sociedade que convive com essa violência e que tolera essa violência. Porque senão ela não existiria. O ambiente social que nós vivemos é um ambiente propício para a violência aumentar. E é por isso que a gente não tem descanso. A gente precisa acordar e dormir lembrando disso o tempo todo. É muito triste precisar repetir esse mantra contra a violência a cada episódio que a violência escala, mas a gente não pode descansar. Não dá para fingir que isso é normal e não dá para conviver com nenhum tipo de violência, inclusive com a violência institucional.

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E parafraseando o livro da senhora, é esse o caminho que a gente tem que traçar para ter um mundo ou uma sociedade menos injusta?

É, porque o livro que eu escrevi diz que a vida não é justa, e não é mesmo. Se a vida fosse justa, uma menina de dez anos não teria engravidado. A vida é indiferente à justiça, mas o que nós temos quando nós construímos um sistema de justiça é um compromisso e uma obrigação com a redução dos danos que nascem das injustiças. Então, para isso, precisamos melhorar muito ainda.

Essas correções que acontecem no meio caminho, essas reflexões que a gente faz enquanto sociedade é o caminho?

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É muito importante, e é muito importante inclusive para os juízes que atuam nessa área, para os promotores que atuam nessa área. Assim, não é o caso defender ou de tentar explicar o que aconteceu, mas de compreender. Olha só o que aconteceu, o que que eu posso aprender com eles? Como é que eu posso fazer diferente, sabe? É importante que a gente se responsabilize pela nossa atuação institucional, porque a sociedade precisa de juízes para garantirem a efetividade dos seus direitos. Eu espero que, pelo menos no ambiente institucional, essa forma de lidar com a violência melhore a partir de determinadas práticas que vem à tona e que nos entristecem muito.

A lei Mari Ferrer, que fala sobre a escuta sensível dentro dos ambientes institucionais de julgamento, é um avanço também?

É um avanço, mas não se muda a sociedade por lei. Cada vez que a gente tem uma violência a reação vem com leis mais rigorosas ou alternativas. O que a gente precisa entender é que o que muda a nossa sociedade é o nosso comportamento e a forma com que nós lidamos com a violência. Nós precisamos ser absolutamente intolerantes com a violência contra a mulher. A lei Maria da Penha é uma das melhores leis do mundo de enfrentamento à violência contra a mulher, no entanto, tem sido insuficiente para barrar a escalada de violência.

Então, é preciso atitude?

Mais do que lei nós precisamos é de uma transformação na convivência e na educação. Isso não é retórica, isso é bem real.

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