O dia 8 de março foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas há quatro décadas como o Dia Internacional da Mulher. Rosas vermelhas, presentes e cartões têm resumido a data criada como consequência e em memória de diversos protestos surgidos no final do século 19, em que mulheres reivindicavam melhores salários e condições de trabalho – o mais icônico é o episódio em que 130 delas foram queimadas em uma fábrica em Nova York.

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Por mais que o fato soe como algo do passado, o assunto não foi superado. Apesar de as mulheres em Blumenau ocuparem quase metade dos 136,3 mil empregos formais, elas ganham, em média, 28,5% menos que os homens, segundo dados do Ministério do Trabalho de 2013. Mesmo com essa diferença salarial, a responsabilidade financeira delas em casa cresceu. O Censo de 2010 aponta que as mulheres são responsáveis pelo sustento de 66,7% dos lares em Blumenau – sozinhas ou com o marido.

O preconceito contra a mulher fica mais evidente quando analisados os números da violência na cidade. De acordo com dados da Delegacia da Mulher foram registrados 4.156 boletins de ocorrência de crimes desse tipo em 2014. Ou seja, 11 mulheres registram uma agressão por dia e há pelo menos um estupro – ou tentativa – por semana. Em muitos desses casos observados pela reportagem, o agressor é o próprio marido, namorado, companheiro e está sob o mesmo teto. A banalidade dos delitos e a quantidade de crimes evidenciam que a mulher é vítima, dentro e fora de casa, de crimes como agressão e estupro pelo simples fato de ser mulher. Vale ressaltar que esses dados são apenas parte da realidade, já que as autoridades garantem que uma parcela dos casos não chega ao conhecimento da polícia.

Avançando pelo século 21, é passada a hora de celebrar o Dia da Mulher sob outro prisma. Como? Basta a sociedade despir-se definitivamente de preconceitos e sexismo para avançar em questões sensíveis que passam por mudanças culturais, educação, legislação e saúde pública. Assuntos que carecem de lucidez acima de bandeiras, dogmas, tabus e opiniões, independente de lados.

O Santa apurou e elencou, simbolicamente, oito pontos entre tantos em que a sociedade ainda precisa avançar para que o gênero não seja motivo de diferenciação, peso social, discriminação e justificativa para a violência.

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Mulheres têm salários mais baixos

As mulheres ainda ganham menos que os homens. E não há motivos claros que justifiquem isso. Os dados mais recentes do Ministério do Trabalho, de 2013, cruzados pelo Sistema de Informações Gerenciais de Apoio à Decisão (Sigad) mostram que as mulheres recebem, em média, 28,5% menos que os homens em Blumenau. Ao todo são 15 os setores listados pelo Sigad em que constam salários médios de ambos os sexos. Entre as áreas de atuação, apenas na construção as mulheres têm salários maiores. Na indústria de transformação – maior empregador de Blumenau e que tem 46,4% da força de trabalho composta por elas – os homens ganham, em média, 49% mais.

A remuneração menor às mulheres começou quando elas entraram no mercado de trabalho para ajudar na renda familiar, conta Nazareno Schmoeller, professor da Furb e coordenador do Sigad. Na época, os salários deles ficaram mais altos porque eram eles os principais provedores do lar. Esse quadro mudou, mas o contracheque, não. No último Censo, as mulheres eram responsáveis exclusivas por 25% das casas de Blumenau. Atualmente elas têm grau maior de instrução e menor rotatividade. Para Schmoeller, a mulher tornou-se mão de obra barata. Os homens ainda ocupam a maior parte dos cargos de liderança, que têm remuneração maior.

– A qualificação é o caminho para acelerar essa redução da diferença entre os salários – acredita Schmoeller.

Os motivos de remuneração menor atribuída às mulheres ainda estão implícitos, explica Rita Varela, que é presidente da regional de Blumenau da Associação Brasileira de Recursos Humanos. Para Rita, a capacidade de buscar resultados entre homens e mulheres está de igual para igual, cada um com suas características. A presidente acredita que a diferenciação salarial atinge todos os níveis de cargos, mas o preconceito pesa nas funções de menor qualificação. Apesar disso, o futuro é positivo, crê Rita. A diferença de salários está caindo. Em 1995 a disparidade era de 36,3%.

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– A nova geração está chegando com uma outra mentalidade, pensando em igualdade. Acredito que em breve essa diferença deve diminuir muito – conclui Rita.

O que ainda é futuro para muitas já é realidade a Renata Felippi Ardanaz. A veterinária de 27 anos trabalha no Zoo de Pomerode. Se a aparência é de uma menina frágil, a realidade demonstra o inverso.Selecionada entre homens e mulheres pela competência e capacidade técnica, lida no dia a dia com todos os animais, incluindo Quênia, uma elefanta com cerca de 50 anos e três toneladas que precisa ter as unhas higienizadas diariamente. A veterinária, que divide as atividades com dois homens, conta que nunca sofreu preconceito. No zoológico, não há diferenciação salarial por gênero.

– O que pesa é a competência, por isso nunca duvidaram da minha capacidade – expõe Renata.

Casais precisam de equilíbrio nas tarefas

O equilíbrio na distribuição das tarefas da casa e cuidados com os filhos é essencial para que a relação familiar se mantenha saudável. É preciso que tanto homem quanto mulher mudem paradigmas para que isso aconteça, explica Catarina Gewehr, doutora em Psicologia Social e professora dos cursos de Direito e Psicologia da Furb.

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No Censo de 2010 o IBGE incluiu uma nova opção no quesito responsabilidade do domicílio. Até 2000 havia apenas a opção homem ou mulher, e agora há a possibilidade de assinalar compartilhamento. Sinal de mudança nos lares. Os dados mais recentes mostram que há 101 mil domicílios em Blumenau. Do total, 42% têm liderança dividida. As mulheres são responsáveis exclusivas em 24,8% das casas e homens, em 33,2%.

Catarina explica que a responsabilidade de mudar a realidade nas casas, que culturalmente cabe à mulher as tarefas domésticas e cuidados com os filhos, também é função de mães e esposas. Está incutido no insciente coletivo tradicional que o homem não tem habilidades para, por exemplo, lavar louça, passar roupa ou trocar fraldas. Entre eles, é necessário tomar a iniciativa de contribuir no dia a dia da casa, serviços importantes para toda a família. Com experiência clínica, Catarina conta que no público com que tem mais contato – classe média e de profissionais liberais – essa realidade já está mudando. As novas gerações também já têm concepção diferente, segundo ela.

Aborto é questão mal resolvida

De acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de óbitos de mulheres em consequência de aborto era a quinta maior causa de mortalidade materna. Problema de saúde pública e considerado crime, é escondido embaixo do tapete nos debates.

O tema está entre aqueles que o Congresso não discute – para fugir de polêmicas e de antipatia na urna -, acredita César Wolff, presidente da subseção de Blumenau da Ordem dos Advogados do Brasil.

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– É um tema de direitos humanos e das mulheres. Diante da omissão do Congresso, logo o Judiciário vai acabar legislando a respeito – estima Wolff.

Em 2013, o SUS registrou 1.523 procedimentos legais enquanto a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia estima que cerca de 900 mil abortos ocorrem por ano no Brasil. Feitos em clínicas clandestinas ou com remédios proibidos, além de colocarem em risco a vida da mulher, podem levar a graves problemas de saúde, conta Osionides Conte Martinez, médico obstetra e ginecologista que atua há quatro décadas no Hospital Santo Antônio. Martinez conta que já presenciou vários casos de mulheres que procuraram atendimento médico quando a situação consequente do aborto já era grave, mas que escondem a origem do problema por medo do julgamento e de serem apontadas como criminosas. A cultura de que o controle de natalidade é uma responsabilidade quase exclusiva da mulher agrava o problema.

– O aborto é problema com base cultural que precisa ser resolvido – pontua Martinez.

Feita em 2010, a Pesquisa Nacional de Aborto revelou que boa parte das interrupções acontece com mulheres que já têm filhos e seguem alguma religião. Estima-se que uma em cada cinco mulheres do Brasil já fez aborto. É o caso de Rosane Magaly Martins, advogada, escritora e membro do movimento feminista Coletivo Casa da Mãe Joana. Ela conta que o aborto foi decidido em conjunto com o marido. Com dois filhos pequenos e sem condições de criar um terceiro, optaram pelo procedimento.

– É um direito da mulher. O corpo é dela – pontua Rosane.

Elas longe da política

A lei que determina que ao menos 30% dos candidatos nas eleições sejam mulheres em nada fez para avançar a participação feminina na política, acredita Fernando Fernandez, advogado, cientista político e professor da Univali. Fernandez entende que é preciso mudar a cultura de que a política é exclusividade dos homens. O trabalho deve começar na infância, educando as próximas gerações. Outras questões sociais, como o acúmulo de tarefas, desestimulam a participação feminina em movimentos políticos.

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– Não estamos fazendo a lição de casa. Os partidos têm responsabilidade em aculturar a população – afirma Fernandez.

Na última eleição, Blumenau não elegeu nenhuma mulher como vereadora. Na Câmara Federal, as mulheres são apenas 9,9% do total de deputados. Entre os eleitos em 2014 para a Assembleia Legislativa de SC (Alesc), elas representam 12,5% – e a Alesc foi o primeiro parlamento estadual a institucionalizar uma bancada feminina. Ana Paula Lima, deputada estadual pelo PT, acredita que cabe à própria mulher buscar participação na política.

– As mulheres são maioria nas ONGS e instituições sociais. A política é fundamental na vida cidadã. Elas têm que entender que também podem estar na política e isso precisa ser incentivado – conclui.

Além de conquistar maioria nas urnas, enfrentar o machismo foi o desafio de Luzia Lourdes Coppi Mathias (PSDB). Ela conta que a eleição como prefeita de Camboriú aconteceu na terceira tentativa. Nas duas primeiras, teve de lutar contra o preconceito, de, inclusive, outras mulheres. Reeleita em 2012, mostrou que capacidade de gestão de um município está acima do gênero.

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– É preciso acreditar na própria capacidade, romper preconceitos. A mulher está ausente no Legislativo Executivo e Judiciário – aponta Luzia.

Dados escancaram a violência

Para a jornalista Simone*, a principal memória dos tempos de criança não deveria sequer ter sido vivida. Acostumada a ficar na casa da tia, confiava nas pessoas até o dia em que ficou sozinha com o homem a quem chamava de “tio”. Ele, revelando uma face desconhecida para a menina de oito anos que ela era, abusou do corpo infantil da sobrinha que havia sido confiada sob sua proteção:

– Não chegou a ter penetração, mas ele me tocou, e me fez tocar nele. Eu sabia que estava acontecendo algo errado, mas não entendia aquilo. Não contei pra ninguém e quando cheguei na adolescência e comecei a entender o sexo e tudo o que havia acontecido foi ainda pior.

Simone não esqueceu e os flashes do episódio da infância permaneceram na sua cabeça, entre seus relacionamentos e impedindo uma vida tranquila. Um segundo episódio de abuso extremo, já adulta, fez com que tudo piorasse e ela caísse em depressão:

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– Eu voltava do trabalho pela Ponte de Ferro, indo pro Centro, eram duas da tarde. Veio esse cara de bicicleta e meteu a mão no meio das minhas pernas, apertou, eu quase caí com a força, e aí seguiu. Eu gritei, xinguei, e ele parou e se virou pra mim. Achei que ele ia voltar e saí correndo e chorando. Esse é o abuso extremo, mas ele começa em cada buzinada, em cada julgamento pelo comprimento da roupa, sempre que um homem se sente livre pra abordar uma mulher na rua e passar uma cantada. Isso tudo é violência.

Simone não está só no sofrimento infligido a ela apenas por ser mulher. O caso dela se junta ao de outras que todos os dias são agredidas, humilhadas e violadas por essa diferença de gênero. No ano passado, 4.156 boletins de ocorrência foram registrados em Blumenau por algum tipo de crime contra a mulher. Os principais, segundo os números e a delegada Juliana Cíntia de Souza Tridapalli, são a injúria – violência verbal – e a ameaça, seguidos pela lesão corporal – a agressão.

Os números de 2014 detalham a covardia: foram 2,6 casos de lesão corporal por dia e 1 estupro ou tentativa por semana.

Um aspecto destacado pela delegada é a origem das denúncias. Atualmente a lei permite que as informações de crimes contra a mulher sejam feitas por outras pessoas ou entidades além da vítima, como familiares, amigos e até hospitais. Nesses casos, as vítimas são geralmente as de situação mais frágil, que dependem de alguma forma do agressor.

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– As que mais precisam do atendimento não procuram a delegacia, muitas vezes porque não têm coragem, porque o agressor também é o provedor da casa. Mas isso está mudando porque se a vítima não vem, a família faz a denúncia. E é uma rede muito grande de atendimento: polícia, Ministério Público, prefeitura, Conselho Tutelar, hospital. E mesmo assim nunca vão chegar 100% dos casos até nós – afirma, lembrando que a mulher precisa ir à delegacia e representar contra o agressor.

Na quarta-feira a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que transforma o feminicídio, ou seja, o assassinato de mulheres pela condição do gênero, em crime hediondo, com pena de até 30 anos de prisão. O texto segue para a sanção da presidente Dilma Rousseff. A mudança é considerada um passo importante para que até as menores ações, que parecem banais e fazem parte de uma herança cultural de opressão, deixem de existir, como o “fiu-fiu” na rua, a buzinada no trânsito, o assédio no ônibus, a gracinha do chefe e tantas outras atitudes corriqueiras, mas que também são crimes:

– Podem ser tratados, no mínimo, como injúria. O problema é que esse comportamento e esses números (de registros) refletem a cultura do nosso país. Nos comerciais, nos programas de televisão, as mulheres são tratadas como objetos. Essa mudança tem que começar por cima, pela regulamentação desses materiais e pela educação.

*A vítima pediu que sua identidade fosse mantida em sigilo. O nome Simone é fictício e foi escolhido por ela.

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Existe machismo feminino

“Mulher no volante, perigo constante!”, “Por trás de um grande homem existe uma grande mulher”, “Ah, mas isso é serviço de mulher!”. Com certeza você já ouviu, ou disse, uma dessas frases. Pense bem, você nunca julgou uma vítima de violência pela roupa ou pela hora que ela estava na rua? Muita gente já fez isso. Muitas mulheres fazem isso.

O Coletivo Feminista Casa da Mãe Joana, organização de Blumenau formada para discutir o papel da mulher na sociedade e lutar por direitos, trabalha para mudar essa consciência. A professora Geórgia Paula Martins Faust, uma das fundadoras do grupo, explica a importância desse debate:

– Só conquistamos os direitos que temos porque tomamos à força. Se esperássemos estaríamos até hoje sem poder usar calças.

Geórgia chama a atenção para reprodução do machismo pelas mulheres, que baseadas em referências recebidas ao longo da vida muitas vezes não percebem que propagam o comportamento preconceituoso. Segundo ela, a reprodução dessas atitudes ocorre porque homens e mulheres são criados recebendo o mesmo discurso, que reforça – às vezes até inconscientemente – o imaginário de superioridade masculina.

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– Costumamos dizer que elas reproduzem machismo porque foi o que aprenderam – justifica.

Outro ponto que identifica o machismo praticado pelas mulheres é a masculinização do comportamento como forma de garantir espaço em várias áreas. Para a doutora em Psicologia Social Catarina Gewehr, neste momento de luta as mulheres precisam ser femininas para não reforçar novamente a masculinização:

– A luta da mulher hoje é por uma emancipação em que ela possa manter-se como feminina e realizar todas as coisas como ser humano, e essa é a pior luta que nós temos, porque é preciso sair do padrão que diz que ou tu és uma mulherzinha, ou és um “Joãozinho” num corpo de mulher.

Luta contra o hábito

A mudança da mulher de hoje, diferente daquela dos séculos 19 ou 20, não está focada em situações objetivas: a roupa, o trabalho, o voto. A luta da mulher de 2015, do século 21, é contra o costume. É contra o pensamento acostumado a achar que a opressão é normal, como afirma Catarina Gewehr, doutora em Psicologia Social:

– Se a mulher aprender a olhar a vida e encontrar o que faz ela feliz, ela também vai entender o que é ruim e não vai mais tolerar. Por exemplo, é normal que todo mundo almoce domingo, vá dormir e eu vá pra pia lavar a louça? Se ela achar que não, ela precisa lutar pra mudar isso. É ali que começa.

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E, mesmo sendo uma luta da mulher, a mudança só ocorre se há um engajamento da parte que, até então, é opressora. A antropologa e ex-participante do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da UFSC, Brune Klöppel, alerta para o fato de que as mulheres precisam de homens aliados:

– A mulher precisa lutar e mostrar a importância dessa luta para o homem. Eles não precisam ser feministas, mas precisam saber ouvir o que as mulheres dizem e levar isso a sério.

Como fugir dos padrões

A solução rápida da cirurgia para resolver problemas de autoestima e seguir padrões de beleza é um recurso perigoso, conforme o cirurgião plástico Leonardo Aguiar. Em um cenário de informações borbulhantes via internet, ele destaca que a mulher precisa selecionar as que mais valem para ela, sem esquecer dos seus próprios valores. Ele revela que já deixou de operar por isso:

– Toda paciente passa por uma equipe, um psicólogo, treinados para identificar as motivações, e quando vemos que ela está fazendo por fatores externos, para salvar um casamento, para seguir um padrão, tento mostrar que aquele não é o melhor momento.

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Além da mídia e das redes sociais, a moda também impõe padrões à mulher, decide o que ela deve usar e o que é bonito. Apesar dessa força, a pesquisadora e analista cultural Maria Carmencita Job acredita que as mulheres estão começando a viver um momento de quebra dos padrões e precisam aproveitar para se livrar de quaisquer amarras:

– As mulheres estão se questionando o porquê de usar isso ou aquilo. A moda tem uma força violenta nessa questão.