O que leva mulheres extraordinárias a transformarem-se em pessoas submissas, assustadas e dependentes quando o assunto é amor?
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Por que mulheres modernas, que são admiradas, fortes e brilhantes em outros aspectos da vida pessoal e profissional, envolvem-se em relacionamentos sem futuro, com homens infiéis, que as amam mal e, mesmo assim, elas insistem em levar essa situação adiante, apesar de todo sofrimento que isso lhes causa?
Todos esses temas são abordados no best-seller ‘Mulheres Malqueridas’, da psicanalista e escritora venezuelana Mariela Michelena, lançado neste ano no Brasil pela Editora Saberes (360 páginas, R$ 39,90).
A obra conta casos e dilemas enfrentados pelas mulheres que Mariela atendeu em seu consultório ao longo dos anos. Além disso, ela faz análises baseadas em conceitos da psicanálise para estabelecer um diagnóstico, dar respostas e permitir que as leitoras façam uma reflexão sobre o comportamento adotado por elas.
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Em entrevista exclusiva para o ‘Anexo D’, a psicanalista analisa os motivos que fazem algumas mulheres ficarem presas a relações impossíveis, que as consomem emocionalmente, e explica por que elas se tornam malqueridas.
Anexo D – Por que algumas mulheres insistem em levar adiante um relacionamento destrutivo?
Mariela Michelena – A mulher malquerida sente-se capaz de qualquer sacrifício para manter o homem amado a seu lado. Ela está disposta a querer pelos dois, independentemente de como ele a trata. A mulher malquerida, como o nome indica, pode se sentir muito querida, mas não como necessita. Um homem ciumento, por exemplo, pode adorar sua mulher e, mesmo assim, fazer a vida dela impossível.
Anexo D – Poderia afirmar que nenhuma mulher está vacinada contra a entrega incondicional e os estragos da paixão? No livro, a senhora cita uma disposição tipicamente feminina para o amor incondicional e o sacrifício. Por que isso acontece conosco?
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Mariela – É preciso levar em consideração que não há uma só causa, cada caso é um caso, mas se buscarmos uma explicação universal, tenho a impressão de que as mulheres estão mais dispostas a sacrificar tudo por amor. Me parece que a disposição para a maternidade, que supõe que a mulher atravesse as dores do parto e seja capaz de se esquecer de si mesma para cuidar do ser mais dependente da Terra, nos faz mais capazes de suportar o insuportável e a perdoar o outro vez ou outra. Às vezes, tratamos um senhor de 40 anos como se fosse um bebê de dois meses, nos ocupamos dele, perdoamos tudo, disfarçamos sua indiferença e sempre estamos ali, fortes e capazes de qualquer sacrifício para ter por perto o ser amado.
Anexo D – Quais são as características das mulheres malqueridas? Elas têm traços em comum?
Mariela – Não existe um único perfil, mas pode haver algumas coincidências entre essas mulheres… Certa disposição ao sacrifício. Mulheres que “podem tudo”, que se encarregam de tudo e de todos, da família, do trabalho e inclusive do parceiro. Mulheres solícitas, mais dispostas a agradar e a mimar do que serem agradadas e mimadas.
Anexo D – As mulheres adquiriram a independência econômica, mas o que fazer para serem independentes também no amor e sofrerem menos?
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Mariela – Existem muitas mulheres que se sentem satisfeitas com sua vida amorosa, sem crises. Os casos que costumo receber em meu consultório são de mulheres muito a seu tempo, autônomas, independentes economicamente, mulheres de sucesso que, em alguns casos, chegam a ganhar mais que seus parceiros, mas que se comportam como damas assustadas do século 19 esperando uma ligação, uma carta ou SMS como se fosse o oxigênio que vai permiti-las respirar o resto do dia. Infelizmente, todas as conquistas de igualdade que nós, mulheres, alcançamos se perdem quando falamos de amor. Somos mulheres do século 19 em tudo, exceto para dizer “Não, assim não estou disposta a continuar com você”. E no fundo, nos sentimos muito poderosas, capazes de transformar o outro, apesar de perder muito tempo presas a uma relação infeliz. Parece que esperamos um milagre.
Anexo D – Elas não são capazes de perceber que estão sofrendo? E por que o homem pode lhe parecer espetacular, quando na verdade não é nada daquilo? Mariela – A mulher que se dedica a transformar seu homem em um deus tem o poder de usar a varinha mágica de seu amor para lhe assinalar atributos levianos: “Será inteligente, frágil, sensível, forte, mas, sobretudo, muito vulnerável, e não poderá viver sem mim. Será um deus todo-poderoso, mas incapaz”. Há homens que se sentem contemplados com essa imagem divina e se oferecem, entusiasmados, para jogar o jogo de ser deus. Este tipo de homem se encaixa perfeitamente com o disfarce que uma mulher apaixonada confeccionou para ele.
Anexo D – Por que algumas saem de um relação desastrosa e embarcam em outra exatamente igual?
Mariela – Porque parece-me que muitas confundem sentirem-se necessárias com sentirem-se queridas. O aspecto “bebê” desses deuses que ela criou necessita dela; em troca, o aspecto onipotente do mesmo ser a ama mal.
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Anexo D – Podemos afirmar que esses relacionamentos são construídos realmente com base no amor? É ou não é amor, como a senhora mesma questiona no livro?
Mariela – Insisto que não se trata de falta de amor, pode ser que haja muito amor, mas um amor mal entendido. Quando falo de síndrome de Cinderela, por exemplo, me refiro a essas mulheres que são capazes de se transformar em outra pessoa para fazer servir o sapato de cristal que o seu parceiro insiste que ela calce.
Anexo D – Quando elas se tornam mulheres malqueridas? E os homens, por que muitos, mesmo sabendo que a companheira sofre ao lado dele, não querem abrir mão daquela mulher, continuam a ligar e tentar reatar quando percebem que elas podem seguir com a vida sem eles?
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Mariela – Quando elas deixam de ser elas mesmas, deixam de sentir-se cômodas em sua vida e se vêm obrigadas a comportar-se de uma ou outra forma para ser complacente ao outro. Mas o parceiro não a ama? Sim. A ama muito!, mas não o que ela é, se não o que tem na cabeça como “mulher ideal”. A quer muito, mas não a quer bem…
Anexo D – Quando ou como o véu começa a cair e ela finalmente enxerga que está em um relacionamento fadado ao fracasso? Como essas mulheres podem resgatar o amor-próprio?
Mariela – O primeiro é saber que estamos imersos em uma relação doente. Esquecer as desculpas e enfrentar a cruel realidade. Com frequência, nossas amigas têm o diagnóstico perfeito para o nosso estado de “saúde” (ou de “enfermidade”) de nossa relação, nos veem sofrer anos após anos, nos veem suportar situações de humilhação, nos veem perdoar traições… Se elas sofrem nos vendo assim, por que suportamos? Uma vez que reconhecemos o problema, é preciso remediar. Conversar, impor limites, recuperar a nós mesmas, recuperar o amor-próprio e a autonomia, nos fazer ser respeitadas. Não se trata de jogar para o outro todas as culpas, mas sim dominar a situação e não permitir mais nenhum mau-trato. Se isso não for suficiente, e não é fácil, a mulher sempre pode procurar um especialista e, em último caso, o melhor é romper a relação infeliz, custe o que custar. O último livro que acabei de publicar se chama “Me Custa Muito te Esquecer”, em tradução livre, foi escrito para todas as mulheres malqueridas que se veem obrigadas a romper com relações de mau-trato e atravessam a dor da separação, mas estão dispostas a reconstituir suas vidas de outra maneira.
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Anexo D – Como é o processo de reconstrução da vida dessa mulher? Como ela pode enfrentar o estigma de um mau amor?
Mariela – Todos os excessos são perigosos. Amar incondicionalmente não é saudável, a menos que se trate de um filho… e até certa idade! Estar disposto a pagar qualquer preço para manter uma relação é sempre um preço muito alto. Em algum momento, é preciso dizer “não gosto disso”, “quero isso”, colocar sobre a mesa nossos desejos, nossas exigências, nossas necessidades, nossa própria humanidade com os limites próprios de cada um. Isso inclui também reconhecer o espaço do outro, suas virtudes, seus defeitos e suas limitações.