— Em janeiro, minha casa alagou quatro vezes. Em 50 anos morando aqui, enfrentei cinco grandes enchentes – conta Elvira Batista, de 84 anos, que mora ao lado do rio Jaguarão, no bairro Anita Garibaldi. De tantos prejuízos, anos atrás a família decidiu erguer a casa. Agora, a água chega até o degrau, mas não passa pela porta.

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Elvira não parece ter esperança de dias melhores, principalmente quando se depara, no meio da noite, com pessoas jogando lixo dentro do rio sem qualquer consequência e poucas programações de limpeza. Só quem se diverte com os alagamentos é o cachorro Tob, que a cada evento faz a maior festa dentro d?água.

Para ela, e para tantas outras vítimas, o diagnóstico sobre as frequentes inundações em Joinville é aquele que ninguém gostaria de ouvir — o fenômeno nunca deixará de existir. É o que indicam especialistas. O problema remonta à formação da cidade, erguida em região propícia às ocorrências, agravado pela crescente impermeabilização do solo durante o desenvolvimento do município.

O desafio é estabelecer uma estratégia para lidar com a situação, com políticas, obras, infraestrutura e hábitos para reduzir o impacto de se viver em uma cidade suscetível a inundações e evitar o caos de segunda-feira da semana passada.

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Fonte: Dados da Defesa Civil / Ilustração AN

Naquela tarde, choveu 143 mm, enquanto a média no verão é de 60 mm a 70 mm por pancada. O que já é bastante água. E a maior parte da chuva do dia 30 de janeiro, 105 mm, caiu em apenas duas horas, metade do volume esperado para o período de um mês, explica o engenheiro ambiental da Defesa Civil, Maiko Richter.

A água chegou a 1,5 metro de altura, entrou nas casas, levou móveis, removeu a terra. Árvores caíram. O impacto foi sentido por 94 mil pessoas e 33 mil unidades habitacionais, a maior parte na zona Sul, levando a Prefeitura de Joinville a decretar situação de emergência.

Deslizamento de terra no bairro Petrópolis

Tudo muito rápido

O especialista e professor de recursos hídricos Robison Negri explica que a principal bacia de Joinville é a do rio Cachoeira. Uma bacia de 80 km², plana, que abrange quase toda a área urbana do município, com predominância em terras baixas, e que sofre efeito de influência da maré duas vezes ao dia, quando o nível do rio sobe.

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Segundo ele, as inundações ocorrem quando há coincidência de grandes precipitações com o subir da maré. São chuvas de 15 minutos a uma hora, com grande intensidade. Em uma hora está tudo alagado.

– A previsão do tempo funciona bem para chuvas de longa duração, aquelas que vêm por meio de massas grandes que se movimentam. Mas as chuvas de inundação formam-se naquele local onde a umidade se acumulou na atmosfera. A chuva que cai às 5 da tarde foi a que se acumulou durante o dia, e é pontual, chove na zona Sul e na zona Norte, por exemplo. Mas é possível minimizar os efeitos, para isso que a engenharia existe – diz.

Para o engenheiro da Defesa Civil, Marcos Kielwagen, a cidade foi se desenvolvendo e gerou a impermeabilização da área urbana. Segundo ele, embora tenha havido ocorrências seguidas de inundações, historicamente as chuvas não são anormais, o que mudou é que a cidade ocupou e impermeabilizou os espaços.

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As obras necessárias para melhorar as condições de drenagem urbana, diz Robison Negri, não são aquelas para acelerar o escoamento, são as que visam a reter o volume, com bacias ou reservatórios, ou seja, são obras caras.

Rua Santa Catarina no dia 30 de janeiro deste ano

Espera

A obra considerada mais importante não tem previsão de sair do papel. Estudo realizado durante o Plano Diretor de Drenagem Urbana sobre as inundações na bacia do Cachoeira apontou como prioritária a macrodrenagem na sub-bacia do rio Itaum-açu. Seu impacto será, principalmente, na zona Sul.

A obra foi orçada em 70 milhões de dólares, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O projeto está pronto e, de acordo com a Prefeitura, o financiamento assegurado. Falta a autorização do governo federal para liberar o acesso aos recursos, sem data para acontecer.

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Até que as obras cheguem, Robison Negri aponta algumas medidas preventivas e para enfrentar inundação periódica:

– Zoneamento das áreas inundadas;

– Controle da erosão do solo e do assoreamento dos rios;

– Adoção de sistemas de previsão e alerta;

– Planos de ação emergencial contra inundações;

– Seguro contra inundações;

– Programas de educação ambiental;

– Legislação para preservar áreas permeáveis;

– Incentivo para construções à prova de enchentes;

– Retirada da população de áreas de risco e reinstalação em áreas seguras;

– Medidas para evitar a impermeabilização do solo e o aumento do volume de água na superfície

Avanço

Do ponto de vista de legislação, a aprovação da Lei de Ordenamento Territorial (LOT) representa um avanço. Pela primeira vez, há limite para impermeabilização do solo em novas construções, explica a gerente de aprovação de projetos da Secretaria de Meio Ambiente (Sema), Caroline Cavalheiro Mafra.

O Código Florestal , de 2012, também restringe construções a menos de 30 metros da margem de rios quando há risco de inundação. A prática é diferente, no entanto. É fácil encontrar construções nestas áreas. O limite não é respeitado, seja porque a construção é anterior à legislação ou porque o local é alvo de ocupações irregulares.

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Prejuízos com inundações não têm cobertura de seguro

Diferentemente de outros fenômenos naturais, como a incidência de raios, vendaval e granizo, as vítimas de cheias não têm meios de ressarcir os prejuízos. O mercado de seguro residencial não cobre danos causados por enchente, não importa se os móveis ficaram encharcados, se houve danos à rede elétrica, nos aparelhos eletrônicos ou se uma árvore tombou e quebrou o telhado da edificação, seja qual for o plano contratado, explica o diretor comercial da Aliança Corretora de Seguros, Fabrício Machado Nunes.

Por este motivo, o especialista e professor de recursos hídricos, Robison Negri, defende a existência de seguro público para regiões sujeitas a inundações frequentes, algo nos moldes do DPVAT, o seguro obrigatório para acidentes de trânsito.

Atualmente, apenas quando a casa é interditada pela Defesa Civil por causa do risco de desabamento o serviço de assistência social do município faz análise da situação para verificar se a família se enquadra nos critérios e pode cadastrar o proprietário, e somente ele, para receber o benefício eventual de auxílio-moradia, no valor de até três UPMs (em fevereiro, 1 UPM equivale a R$ 807,57). O benefício é válido por seis meses, podendo ser prorrogado mediante análise do poder público.

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:: Famílias atingidas podem ter desconto na fatura de água

Criança recebe almoço no abrigo da Igreja Nossa Senhora Aparecida

Futuro incerto

Entre as principais vítimas de inundações estão aquelas que moram em casas improvisadas, construídas ilegalmente em áreas de risco, perto de rios ou em morros. São famílias como a de Rogeno Antônio Paz, 34 anos, a mulher Cristiane, 30, e as três filhas pequenas. Eles moram há nove anos no Morro da Formiga, no bairro Petrópolis, e nunca tinham visto chuva tão forte.

O barranco que fica atrás de casa deslizou e foi parar na residência do vizinho. Rogeno havia feito contenção com pneus, mas não foi suficiente. A vistoria da Defesa Civil detectou risco de desabamento, e a casa sofreu interdição.

– Vimos árvore caindo, entrou água dentro de casa, uma situação de desespero – conta Cristiane

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Na primeira noite após a chuva da última segunda-feira, a família de Rogeno ficou em casa de parentes, mas, sem espaço suficiente, foi levada para um dos 14 abrigos da cidade. O mais próximo era a Igreja Nossa Senhora Aparecida. O serviço de assistência social do município oferece mantimentos, almoço e janta. A alimentação é preparada no Restaurante Popular no bairro Adhemar Garcia.

Abrigo na Igreja Nossa Senhora Aparecida

Em sua estreia como abrigo, a igreja ainda não dispõe de toda a estrutura – falta chuveiro, por exemplo. O local tem capacidade para receber 20 pessoas, dispõe de colchão, água filtrada, cozinha, banheiro e o mais importante, é um lugar seguro. Ainda assim, a família dormiu uma noite na casa interditada com medo de que seja saqueada ou ocupada.

O futuro é incerto. Como se trata de ocupação irregular, a família não tem direito ao auxílio-moradia e o abrigo provisório destina-se ao atendimento emergencial, que dura em torno de uma semana. A situação da família de Rogeno não é única nesta localidade. O coordenador-geral da igreja, Emerson Luiz Petri, diz que oito famílias moram em área de risco na parte de cima do Morro da Formiga, e cerca de 50 famílias na parte baixa, sujeita a cheias.

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– O abrigo é provisório, em seguida é feito o encaminhamento para política de habitação -afirma a assistente social, Neide Mary Camacho Solon.

De acordo com Petri, várias famílias na região estão inscritas no programa habitacional, e o jeito agora é esperar.

De olho nas nuvens

Quando o cidadão tem consciência das regiões que alagam na cidade e percebe as nuvens se formando no céu durante a tarde, dá para prever o risco de alagamentos e planejar melhor o roteiro para evitar se deparar com água pelo caminho. Para o engenheiro da Defesa Civil Marcos Kielwagen, a cidade deve desenvolver uma cultura de percepção do risco.

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– É preciso acompanhar as marés e, se vai chover, não deixar o carro parado em regiões que costumam alagar – exemplifica.

Quando isto não é possível, o diretor comercial da Aliança Corretora de Seguros, Fabríco Machado Nunes, faz alguns alertas aos motoristas. Fabrício recomenda nunca passar por ruas alagadas, pois, em caso de pane, o seguro não vai cobrir o custo do conserto.

Segundo ele, as seguradoras consideram que o motorista assumiu o risco de passar na água. Porém, se o carro estiver em um congestionamento, ou seja, se o motorista não tem como sair da situação, aí, neste caso, haverá cobertura.

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Se o carro estiver estacionado e a água começar a subir, outra dica é manter o veículo no local, fazer uma foto e enviar para seguradora. Em nenhuma situação tentar tirar o carro dali, pois, ao dar partida, a seguradora vai entender que o veículo estava em movimento, ou seja, que o motorista arriscou passar pela inundação, e não custeará as despesas.