Abafados pelo funk pancadão e pela algazarra de vozes simultâneas, homens e mulheres conversam aos gritos, aproximando o rosto do interlocutor. Dançam em torno de mesas do que horas antes funcionava como restaurante à beira-mar. Ao fundo, um jovem usando suspensórios ergue garrafas de espumante incandescentes enquanto vibra sob as luzes coloridas. A noite é de euforia.
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A julgar pelo vídeo que viralizou nas redes sociais – e contribuiu para a decisão judicial que viria a interditar o lugar na última terça-feira, dia 12 –, ninguém usava máscara naquela sexta-feira (8) na casa noturna, em Balneário Camboriú. Nas imagens, também há pouquíssimos celulares. Os presentes foram convidados a guardar os aparelhos em sacos plásticos. Nada na cena remete à mobilização global contra o coronavírus, que já enlutou mais de 200 mil famílias brasileiras e sobrecarrega os hospitais.
A repetição de episódios como o da balada, em retrospecto, faz parecer benigna a imagem do saxofonista recebendo clientes de um shopping em Blumenau, em abril de 2020, que causou reações indignadas e cristalizou-se como símbolo de irresponsabilidade. Normas de convivência são ignoradas na mesma frequência com que se repete o mantra: “estamos respeitando todos os protocolos”. Após 10 meses de pandemia de Covid-19, cumprir a regra parece ter virado exceção. Por quê?
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Pesquisadores que se debruçam sobre o comportamento de indivíduos e sociedades explicam a desobediência explícita às medidas preventivas de diferentes formas. Levantam questões objetivas, como privações econômicas de quem não pode fazer home office e o emaranhado de regras que confundem empresários e cidadãos. Mas também aspectos profundos e subjetivos sobre como o brasileiro lida com a morte e com as leis. Afinal, quem promove festas em casa não tem medo de contaminar amigos e parentes? O que explica alguém sem máscara enfiar-se em uma multidão?
Para a psicóloga Magda Zurba, trata-se de negação, estratégia humana para lidar com o luto e frustrações importantes. O cientista político Alberto Carlos Almeida atribui a desarticulação social ao fatalismo de origem religiosa, à ideia de que “se morrer, era a hora”. Valmor Schiochet, sociólogo, enfatiza o ambiente político de conflito. Já o veterano antropólogo Roberto DaMatta relaciona comportamentos imprudentes ao jeitinho brasileiro e à maleabilidade de uma sociedade escravocrata que durante séculos relacionou autoridade ao chicote.
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Ainda há outras hipóteses: o cansaço mental com o prolongamento da crise, o melindre de cobrar o vizinho pelo cumprimento das leis, o papel da baixa escolaridade e a pressão exercida por grupos organizados, como associações de empresas. Tão complexas quanto o diagnóstico são as possíveis soluções. Seja para reagir ao coronavírus ou tornar as comunidades mais coesas para quando vier a próxima pandemia – e ela virá, alertam os epidemiologistas.
Orientações assertivas, e não contraditórias, das autoridades seriam um começo. Melhor fiscalização, também. Mas como modificar a cultura da “lei que não pega”?
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– Você precisaria de uma mentalidade mais científica e menos fatalista. Uma sociedade mais escolarizada, não só no nível, mas também na qualidade – analisa Almeida.
Schiochet tem ressalvas à tese. Reconhece a importância da escola na formação do senso coletivo, mas pontua contradições:
– Me parece que os casos mais emblemáticos, o pessoal que vai para boate, são de pessoas de uma certa elite intelectual, econômica. Não é uma questão de educação formal, elas são deseducadas culturalmente.
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De fato, predominam entre os frequentadores do estabelecimento pessoas instruídas. Na última quarta-feira, dia 13, a casa noturna criticou a decisão da Justiça que interditou as atividades.
Hábitos de higiene que podem ficar:
Religiosidade e cultura cívica
Doutor em Ciência Política e Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Alberto Carlos Almeida, interessa-se por dados estatísticos que ajudem a explicar os valores da população brasileira. No livro “A Cabeça do Brasileiro”, de 2007, o pesquisador apresenta o brasileiro médio como alguém que aceita o risco facilmente.
Para ele, o fatalismo nacional está atrelado à crença religiosa de que o destino de cada indivíduo depende de vontade divina. Conforme essa hipótese, a inércia diante da pandemia origina-se na certeza de que o vírus só infecta os outros. Agora, se acontecer do cidadão adoecer, ou um parente, resta entregar-se à vontade divina.
– É uma visão de que a ação individual não importa, ou importa muito pouco, para minimizar o problema – avalia Almeida.
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Nas ciências sociais brasileiras, o debate é intenso sobre traços culturais da população que atrapalham ações coletivas. Uma vertente, em que o antropólogo Roberto DaMatta é referência e onde Almeida insere-se, aponta a falta de civilidade como traço intrínseco. Outra corrente critica comparações depreciativas com países europeus e norte-americanos e analisa o problema de uma perspectiva marxista.
A falta de acesso da maioria pobre às condições de vida de uma minoria rica ajudaria a explicar o comportamento dúbio diante de prescrições pensadas para atender certos grupos em detrimento de outros.
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Para o doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UNB) e professor da Furb, em Blumenau, Valmor Schiochet, há contradições nas medidas restritivas que geram dúvidas sobre a efetividade delas.
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– A condição de necessidade nas camadas populares cria uma percepção de que é uma hipocrisia exigir que as pessoas não se aglomerem. Se não pegou Covid-19 no ônibus lotado, não é tomando cerveja no bar que vai pegar – exemplifica.

Do negacionismo à aceitação
Uma das mais populares teorias da Psicologia é a que estabelece cinco fases para o luto: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. De maneira ampliada, os conceitos podem ser adotados para discutir as reações humanas diante de crises emocionais, como a pandemia de Covid-19. É o que propõe a psicóloga, doutora em Educação e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no programa de Pós-Graduação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, Magda Zurba.
O desprezo à prevenção passa pela negação da gravidade da doença, discurso presente até hoje. Na segunda etapa, a tendência é apontar culpados: o governo, a oposição, a mídia. Na formulação de Magda, a fase da barganha da Covid-19 é marcada por raciocínios como: “Se eu for de máscara e levar álcool no bolso, posso fazer o que quiser”.
Em seguida, vem o sentimento de depressão frente ao que se perdeu.
– Aceitar exige muita maturidade das pessoas. Nem todo mundo tem e dependeria muito do sistema de saúde acolher as pessoas enquanto passam pelas cinco fases. As pessoas que aceitam o que acontece também estão em sofrimento, mas pode ser um sofrimento mais maduro – analisa ela.
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A psicóloga explica que empatia é um dos componentes fundamentais da saúde mental, desenvolvido desde a infância. Quanto menos o indivíduo sente que tem uma rede de apoio para enfrentar dificuldades, a tendência é posicionar-se de maneira arredia, negacionista.
Para Magda, essa é outra epidemia brasileira, que não se resolve com vacina. Ela se manifesta na pandemia, mas também no trânsito e na violência urbana e doméstica.
– A sociedade brasileira não tem repertório, não desenvolveu a habilidade de pensar coletivamente – lamenta.

Excesso de regras e liderança confusa
Desde que o governo do Estado compartilhou com os municípios a responsabilidade de restringir atividades, em meados de 2020, a vida dos catarinenses passou a ser regrada por uma infinidade de decretos, portarias, notas técnicas e mapas de risco, não raro contraditórios entre si.
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Eleições municipais, o processo de impeachment contra o governador Carlos Moisés (PSL) e ações judiciais contra e a favor de restrições contribuíram para um clima de incerteza sobre o que está valendo. Assim, tornou-se corrente a ideia de que, se cada um cuidar de si, não seria necessário restringir nada.
– Não funciona desse jeito. Por um lado, claro, você precisa da contribuição individual das pessoas, mas você também precisa de alguém que coordene isso, e em geral essa liderança é do governo – contesta o cientista político Alberto Carlos Almeida.
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Para o sociólogo Valmor Schiochet, o discurso de confronto às medidas preventivas por parte do presidente Jair Bolsonaro e de políticos ligados a ele minam as ações para redução do contágio do coronavírus.
CONTRAPONTO
A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da Secretaria de Estado da Saúde para questionar sobre o descumprimento de normas sanitárias em Santa Catarina. O órgão respondeu:
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“A Secretaria de Estado da Saúde sempre trouxe orientações claras sobre as regras sanitárias existentes e o risco que as aglomerações poderiam significar para um possível agravamento da pandemia”.
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