*Por Carl Zimmer
A ameaça da poluição do ar chama nossa atenção quando a percebemos – por exemplo, a fumaça lançada pelos incêndios florestais na Austrália, que agora é visível do espaço, ou a nuvem venenosa que avança sobre cidades como Nova Déli no inverno.
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Mas o ar poluído afeta bilhões de pessoas mesmo quando não é visível. Nas áreas externas, aspiramos toxinas liberadas pelo trânsito, por usinas movidas a carvão e por refinarias de petróleo. As lareiras e fogões a lenha sujam o ar das casas de bilhões de pessoas em países pobres. Mais de um bilhão de pessoas aspiram voluntariamente toxinas ao fumar cigarros e, mais recentemente, cigarros eletrônicos.
Noventa e dois por cento da população mundial vivem em locais onde os níveis de material particulado fino – as partículas mais perigosas para os tecidos do corpo humano – excedem os limites estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde. Juntos, a poluição do ar e o tabaco são responsáveis por cerca de 20 milhões de mortes prematuras todos os anos.
Toxinas transportadas pelo ar nos prejudicam de diversas maneiras. Além da relação bem conhecida entre a poluição, o câncer de pulmão e os problemas cardíacos, os pesquisadores começam a encontrar novas relações com doenças como o diabetes e o mal de Alzheimer.
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Os cientistas ainda tentam entender como a poluição do ar causa esses distúrbios. Eles também não sabem ao certo de que maneira algumas pessoas parecem ser resistentes a essa adversidade moderna. Alguns pesquisadores argumentam que a resposta para essas questões está em nosso distante passado evolutivo, milhões de anos antes que o primeiro cigarro fosse aceso e que o primeiro carro acelerasse pelas ruas.
Nossos ancestrais eram assombrados por toxinas transportadas pelo ar mesmo quando ainda eram símios bípedes que caminhavam pela savana africana, afirmaram Benjamin Trumble, biólogo da Universidade Estadual do Arizona, e Caleb Finch, da Universidade do Sul da Califórnia, na edição de dezembro da revista científica "Quarterly Review of Biology".
Os pesquisadores sugerem que nossos antepassados desenvolveram defesas contra esses poluentes. Atualmente, essas antigas adaptações podem nos proteger, ainda que de maneira limitada, contra a fumaça do tabaco e outras ameaças aéreas.
Porém nosso legado evolutivo pode também ser um fardo, especularam Trumble e Finch. Algumas adaptações genéticas podem nos tornar mais vulneráveis a doenças ligadas à poluição.
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"Trata-se de uma contribuição muito criativa e interessante à medicina evolutiva", afirmou Molly Fox, antropóloga da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que não participou do estudo.
A história começa há cerca de sete milhões de anos. Na época, a África se tornava cada vez mais árida. O deserto do Saara surgiu no norte do continente, enquanto áreas de savana se formaram a leste e ao sul do continente. Os ancestrais dos chimpanzés e gorilas continuavam em florestas cada vez menores, mas nossos antepassados se adaptaram aos novos ambientes. Eles desenvolveram uma estrutura física alta e esbelta, ideal para caminhar e correr por longas distâncias.
Finch e Trumble acreditam que os primeiros seres humanos enfrentaram mais um desafio, que foi ignorado até o momento: o ar. De tempos em tempos, a savana era alvo de fortes tempestades de areia vindas do Saara e nossos ancestrais corriam o risco de prejudicarem os pulmões quando respiravam as partículas ricas em sílica.
"Quando o ambiente está empoeirado, temos mais problemas pulmonares", explicou Finch. Mesmo nos dias de hoje, pesquisadores gregos revelaram que, quando os ventos do Saara chegam ao país, ocorre um aumento no número de hospitalizações em decorrência de problemas respiratórios.
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A densa folhagem das florestas tropicais protegia chimpanzés e gorilas das nuvens de poeira. Contudo, os primeiros humanos, que caminhavam pelos campos abertos, não tinham onde se esconder.
A poeira não era o único perigo. Os pulmões dos primeiros humanos também podem ter ficado irritados com os altos níveis de pólen e partículas de matéria fecal produzida pelos enormes rebanhos de animais da savana.
Finch e Trumble afirmam que os cientistas deveriam se perguntar se esses novos desafios alteraram nossa biologia por meio da seleção natural. É possível, por exemplo, que as pessoas resistentes à fumaça do tabaco tenham herdado variantes genéticas que protegiam seus ancestrais distantes da fumaça das fogueiras nas cavernas?
Uma maneira de responder essas questões é observar os genes que evoluíram significativamente desde que nossos ancestrais saíram das florestas. Um deles é conhecido como MARCO e fornece a receita para a produção de um gancho molecular usado pelas células do sistema imune em nossos pulmões. As células utilizam esse gancho para retirar bactérias e partículas, incluindo o pó de sílica.
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A versão humana do gene MARCO é bastante diferente da encontrada em outros símios. Essa transformação aconteceu há pelo menos meio milhão de anos. (Os neandertais também carregavam a variação.) Respirar o ar empoeirado teria levado à evolução do gene MARCO em nossos ancestrais das savanas, sugerem Finch e Trumble.
Mais tarde, nossos ancestrais adicionaram mais ameaças ambientais quando dominaram o fogo. Ao passarem mais tempo perto do fogo para preparar a comida, manter o corpo aquecido ou afastar insetos, eles respiravam a fumaça. Assim que os primeiros humanos começaram a construir abrigos, o ambiente se tornou ainda mais prejudicial aos pulmões.
"A maioria dos povos tradicionais vive em ambientes saturados de fumaça. Acredito que isso já acontecia mesmo antes de nossa espécie aparecer", afirmou Finch. Ele e Trumble acreditam que a fumaça criou uma nova pressão evolutiva. Os seres humanos desenvolveram poderosas enzimas hepáticas, por exemplo, para quebrar as toxinas que passam dos pulmões para a corrente sanguínea.
Gary Perdew, toxicologista molecular da Universidade Estadual da Pensilvânia, e seus colegas encontraram evidências de outro gene que evoluiu devido à fumaça, o AHR. Esse gene produz uma proteína encontrada em células do sistema digestivo, dos pulmões e da pele. Quando toxinas ficam presas à proteína, as células liberam enzimas capazes de eliminar o veneno.
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Outros mamíferos usam o gene AHR para desintoxicar os alimentos. Mas a proteína também é eficaz contra alguns dos compostos presentes na fumaça da madeira. Comparada à de outras espécies, a versão humana produz uma reação mais fraca às toxinas, talvez porque a proteína AHR não seja a protetora perfeita – os fragmentos que ela deixa podem causar danos aos tecidos.
Antes do fogo, nossos ancestrais não precisavam usar o gene AHR com muita frequência; em teoria, seu corpo tolerava o dano limitado que a proteína causava. Mas, quando começamos a respirar fumaça regularmente e a proteína AHR era usada constantemente, o gene pode ter se tornado perigoso para nossa saúde.
Perdew acredita que os seres humanos passaram a ter uma reação mais fraca à AHR como forma de encontrar um "equilíbrio ideal" entre a redução dos danos causados por poluentes carregados pelo ar e os efeitos colaterais causados pela proteína.
Essa adaptação nunca foi perfeita, como é possível notar pelo fato de que milhões de pessoas morrem todos os anos devido à poluição do ar. A evolução, porém, não busca uma saúde perfeita.
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"O mais importante, do ponto de vista evolutivo, é que você se reproduza. Se você morrer aos 40 e poucos anos, isso já não tem importância. Claro que essa é uma maneira fria e calculista de pensar sobre o tema, mas as coisas são assim", afirmou Perdew.
Uma atmosfera transformada
Nossa espécie chegou à Revolução Industrial há dois séculos, com o corpo moldado durante milhões de anos por um processo imperfeito. Água limpa, remédios funcionais e outras inovações reduziram drasticamente o número de mortes causadas por doenças infecciosas. A expectativa de vida aumentou enormemente. Contudo, nossa exposição a toxinas transportadas pelo ar também aumentou.
"Se compararmos os últimos cinco milhões de anos a um único ano, a Revolução Industrial teria começado às 23h40 do dia 31 de dezembro. Vivemos em uma fração de segundo da existência humana, mas acreditamos que tudo que nos cerca sempre foi normal", afirmou Trumble.
A Revolução Industrial foi movida a carvão mineral e as pessoas começaram a respirar essa fumaça. Os carros se tornaram onipresentes; usinas termoelétricas e refinarias de petróleo se espalharam. Empresas de tabaco produziam cigarros em escala industrial. Atualmente, 6,5 trilhões de cigarros são vendidos a cada ano.
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Nosso corpo reagiu a isso com defesas que foram ajustadas ao longo de centenas de milhares de anos. Uma das reações mais poderosas foi a inflamação. Mas, em vez de momentos limitados de inflamação, muitas pessoas começaram a experimentá-la constantemente.
Diversos estudos sugerem atualmente que a inflamação crônica representa uma importante conexão entre toxinas carregadas pelo ar e doenças. No cérebro, por exemplo, a inflamação crônica pode limitar nossa capacidade de eliminar proteínas defeituosas. À medida que essas proteínas vão se acumulando, elas podem levar à demência.
Os patógenos podem se ligar às partículas poluentes. Quando chegam às narinas, podem entrar em contato com terminações nervosas. Ali, pode ser que originem ainda mais processos inflamatórios. "Funcionam como um caminho que leva diretamente ao cérebro. Acredito que é isso que torna o tema tão assustador", explicou Fox, da Universidade da Califórnia.
Algumas variantes genéticas que surgiram em nosso passado esfumaçado podem nos ajudar agora. Elas permitem que algumas pessoas vivam mais, apesar de fumarem, sugerem Finch e Trumble. Os pesquisadores, no entanto, estudaram outro gene para o qual o contrário parece ser verdade: uma variante que já foi útil agora se tornou deletéria em uma era cada vez mais poluída.
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A variante, ApoE4, apareceu pela primeira vez porque aumenta drasticamente o risco do desenvolvimento do mal de Alzheimer. Mais recentemente, os pesquisadores também descobriram que o ApoE4 aumenta o risco de demência causada pela exposição ao ar poluído.
Mas esses estudos foram realizados apenas em países industrializados. Quando os pesquisadores analisaram outras sociedades – como agricultores de vilarejos em Gana ou indígenas que vivem na floresta boliviana –, o ApoE4 teve um efeito completamente diferente.
Nessas sociedades, as doenças infecciosas continuam a ser a principal causa de morte, especialmente entre as crianças. Os pesquisadores revelaram que, nesses lugares, o ApoE4 aumenta as chances de sobreviver até a vida adulta e se reproduzir.
A seleção natural pode ter favorecido o ApoE4 durante centenas de milhares de anos, devido a essa capacidade de aumentar os índices de sobrevivência. Porém esse e outros genes podem ter tido efeitos colaterais negativos que permaneceram invisíveis até a chegada da poluição nos tempos modernos.
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