A Copa do Mundo acontece envolta em protestos contra as violações de direitos humanos no Catar, tanto dentro quanto fora de campo. Primeiro país árabe a sediar o evento, o Catar abriga inúmeras denúncias de trabalho análogo a escravidão, criminaliza a comunidade LGBTQIA+ e oprime direitos das mulheres. Por que a Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa) escolheu o Catar como país sede mesmo com o perfil autoritário?
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Essa não foi a primeira escolha controversa da federação. O cenário é similar ao de 1978, quando a Argentina sediou a Copa. Na época, o país era governado pelo general Jorge Rafael Videla e atravessava um dos piores momentos da ditadura militar – que iniciou em 1976 e terminou em 1983 com uma estimativa de 30 mil mortos. Além disso, há indícios de que o governante fez articulações para que a Argentina vencesse o torneio a qualquer custo.
Diante da tensão nas Copas na Argentina e da que está acontecendo no Catar, o professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador em antropologia do esporte, José Paulo Florenzano, avalia que a Fifa tem uma postura histórica baseada em um discurso que tenta estar acima da sociedade, mas acaba situada ao lado do autoritarismo.
– A Copa do Mundo é um evento que comporta um risco simbólico para o país que está sediando e para a própria FIFA. Ambos tentam exercer pleno controle sobre o significado do evento, mas ele [o significado] escapa o tempo inteiro desse controle. Então é isso que estamos vendo no Catar. Embora haja repressão, coerção e ameaça de punição, as manifestações acontecem dentro e fora de campo e, portanto, as mensagens que a FIFA pretendia reprimir tomam maiores proporções – , avalia Florenzano.
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Wir wollten mit unserer Kapitänsbinde ein Zeichen setzen für Werte, die wir in der Nationalmannschaft leben: Vielfalt und gegenseitiger Respekt. Gemeinsam mit anderen Nationen laut sein. Es geht dabei nicht um eine politische Botschaft: Menschenrechte sind nicht verhandelbar. 1/2 pic.twitter.com/v9ngfv0ShW
— DFB-Team (@DFB_Team) November 23, 2022
Criminalização da homossexualidade
Uma das manifestações com maior repercussão foi o posicionamento da seleção da Alemanha em jogo contra o Japão. Na partida, os jogadores da seleção tetracampeã mundial posaram para a foto oficial com a mão cobrindo a boca. O gesto foi feito após a Fifa afirmar que haveria punição aos capitães, caso entrassem em campo com a braçadeira estampando as cores da bandeira LGBTQIA+ e a mensagem “One love”. Inclusive, antes da bola rolar, o auxiliar de arbitragem conferiu a braçadeira de Manuel Neuer, goleiro e capitão da seleção alemã.
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O Catar é um dos 70 países no mundo que proíbe relacionamentos homoafetivos, segundo a Anistia Internacional. No país, a homossexualidade pode ser punida com prisão, castigo físico e até deportação.
Símbolos ligados à comunidade LGBTQIA+ têm sido incômodos no país. A seleção da Bélgica foi proibida pela Fifa de usar a sua segunda camisa. O uniforme da equipe possui a palavra “love” escrita com as cores do arco-íris. Há também relatos de torcedores com circulação barrados nos estádios com qualquer objeto que faça referência a comunidade.
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Denúncias de trabalho escravo
O Catar tem 2,8 milhões de habitantes, mas apenas 300 mil pessoas são nascidas no país. Assim, sua população é majoritariamente formada por imigrantes de países como a Índia, Sri Lanka, Nepal e Paquistão.
Até 2016, essas pessoas chegavam ao país a partir do kafala – modelo de contrato de trabalho que vincula os trabalhadores aos empregadores responsáveis por trazê-los ao país. Em alguns dos casos, os contratantes retém ilegalmente o passaporte desses imigrantes.
Além disso, as condições de trabalho são precárias e inseguras. Uma reportagem do jornal britânico The Guardian mostrou que, desde 2010, mais de 6 mil trabalhadores morreram em obras de infraestrutura no Catar. A matéria diz que 37 mortes foram de pessoas que estavam trabalhando diretamente em obras dos estádios da Copa.
O antropólogo Florenzano avalia que a repercussão desta reportagem do The Guardian foi grande e que os dados apresentados são assustadores. “É importante dizer que é muito crítico ter levado uma Copa para um país que tolera esse tipo de violação com o grupo de trabalhadores imigrantes, que é um grupo muito vulnerável no mundo todo”, completa.
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Violação de direitos das mulheres
Outra questão que tem repercutido são os direitos das mulheres. Em 2021, a organização Human Rights Watch (HRW) documentou que as leis do Catar impõem que a população feminina precise de autorização de um homem para realizar atividades que vão de estudar a receber cuidados de saúde.
Segundo a HRW, o código penal do Catar criminaliza todas as formas de sexo fora do casamento. Se os casos acontecem com mulheres muçulmanas, estas podem ser apedrejadas ou açoitadas como condenação. A organização alerta que denúncias de estupro são muitas vezes desconsideradas pela polícia e podem ser revertidas como prova para a condenação de mulheres.
Política de Havelange
Além da relação da Fifa com regimes autoritários, o antropólogo José Paulo Florenzano, aponta que ao escolher o Catar, um país em que o futebol não é tão popular, a entidade está seguindo a mesma política de João Havelange. O brasileiro presidiu a entidade de 1974 até 1998, organizando seis Copas do Mundo no período.
Havelange possuía uma visão da universalização do futebol, levando esse esporte para lugares onde ele não é hegemônico. Exemplos dessa prática são as Copas de 1994 sediada nos Estados Unidos, 2002 no Japão e Coréia do Sul, 2010 na África do Sul e, agora, no Catar – o primeiro país de cultura árabe a receber o evento. Portanto, é uma prática de interesse econômico.
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Outra questão na escolha do Catar para sediar a Copa é a suspeita de que o país comprou votos de funcionários da FIFA para que eles apoiassem a sua candidatura. O jornal britânico The Sunday Times revelou em uma apuração exclusiva que o governo do catari teria pago 880 milhões de euros (cerca de R$ 3,8 bilhões de reais) à entidade.
O anúncio do país sede aconteceu em 2010 e o Catar venceu propostas dos EUA, Coreia do Sul, Japão e Austrália. Uma investigação inocentou os dirigentes do país, mas o então presidente da Fifa, Sepp Blatter, que apoiou a candidatura do Catar, atualmente está sendo julgado na Suíça por fraude, peculato e corrupção.
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Estratégia de Soft Power
O antropólogo José Paulo Florenzano também avalia que o Catar se beneficia de uma estratégia de soft power ao receber a Copa do Mundo. O conceito da área das relações internacionais se relaciona com o reposicionamento de um país no contexto global. No caso do Catar há o interesse em ser um pólo de atração turística, seja ele de negócios ou de lazer.
– Dentro do Golfo Pérsico [região em que o país sede da Copa está inserido] o Catar vive à sombra da Arábia Saudita. Esses países disputam a hegemonia no local e, para anteceder qualquer ação por parte da Arábia, o Catar investe nessa estratégia de soft power e o esporte cumpre papel importante nesse trabalho – comenta Florenzano.
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Além da própria Copa do Mundo, o circuito de Lusail, na Fórmula 1, e os investimentos em times de futebol europeus, como o Paris Saint-Germain (PSG), também fazem parte desse reposicionamento geopolítico do Catar.
Manifestações durante a Copa
A seleção alemã realizou uma das manifestações que mais repercutiram ao tirar a foto oficial do jogo com a mão tampando a boca. Outras duas seleções também realizaram protestos. Os atletas do Irã não cantaram o hino nacional na primeira partida da Copa. O posicionamento foi visto como um apoio à revolução que ocorre no país. Na torcida, foi possível ver mulheres que exibiam mensagens como “Vidas femininas importam”.
A seleção da Inglaterra também se manifestou. Nas duas primeiras partidas, os jogadores se ajoelharam em campo contra as violações dos direitos humanos que ocorrem no Catar. Além disso, o capitão Harry Kane, usa uma braçadeira que estampa a mensagem “No discrimination” (sem discriminação).
Todas essas manifestações têm sido vistas de forma positiva pelo antropólogo da PUC-SP. Florenzano enxerga que essa onda de posicionamento no esporte vem desde o caso George Floyd, em 2020 – quando um jovem negro, nos Estados Unidos, foi morto em uma abordagem policial violenta e deu início a uma série de protestos pelo mundo.
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Torcedores do Irã são repreendidos por protesto antes da partida contra País de Gales
Um exemplo dessa onda de protestos foi o boicote de atletas à NBA. Logo após o assassinato de Floyd e também ao caso de Jacob Blake, um homem negro de 29 anos morto com sete tiros pelas costas por policiais brancos em Kenosha, no estado de Wisconsin, o time de basquete Milwaukee Bucks não entrou em quadra em partida contra o Orlando Magic, paralizando o campeonato.
– O esporte é um espaço privilegiado no embate entre civilização e barbárie. Não é um embate entre direita e esquerda, é um embate muito mais amplo e profundo, que coloca em cheque os nossos valores. Quando eu falo em valores, não são apenas os valores ocidentais, porque eu acho que a civilização é resultado dos entrecruzamentos das várias sociedades. Então toda sociedade tem aspectos positivos e negativos e no fundo a civilização tem que ser o resultado de um mundo diverso, igualitário e plural.”, relata Florenzano.
Essa Copa do Mundo vem como uma forma de provar, mais uma vez, que o futebol e o esporte estão muito além do que é apresentado em jogo.
– Espero que o futebol tenha consciência do quanto ele é crucial para defender a democracia e os direitos das minorias – finaliza o antropólogo.
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Assista ao vídeo sobre o Catar
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