Não estamos em um campo de guerra, mas, diariamente, respiramos um ar que pode nos matar. Segundo levantamento divulgado em maio pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nove em cada 10 pessoas no mundo respiram ar poluído. No Brasil, ele é responsável pela morte de 50 mil pessoas a cada ano, por causar doenças como câncer de pulmão, ataque cardíaco e derrame cerebral. O documento alerta sobre um assunto que jogamos para debaixo do tapete (ou melhor, pela chaminé e pelo carburador): nosso estilo de vida está agredindo o planeta e, ao mesmo tempo, a nós mesmos.
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– Pelos dados que temos, pode-se dizer que alguns municípios e regiões metropolitanas do país ainda apresentam índices altos de poluição, ultrapassando os níveis de referência da OMS para qualidade do ar em mais de cinco vezes. O Brasil também tem um problema sério com as queimadas, que comprometem a qualidade do ar em áreas urbanas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste – diz Katia de Pinho Campos, coordenadora de Determinantes da Saúde do escritório brasileiro da OMS.
No mundo, a poluição atmosférica e dentro de residências (gerada na queima de lenha ou de querosene) provocou 7 milhões de mortes em 2016 – principalmente entre moradores de grandes cidades e de países de média e baixa rendas em especial na Ásia e na África. As populações mais afetadas são crianças de até cinco anos, idosos e pessoas com problemas respiratórios (como asma) ou cardíacos (pressão alta ou insuficiência). O estudo leva em conta relatórios oficiais de localidades que registram a qualidade do ar pelo menos desde 2008.
Uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de 1989 define os Estados como responsáveis pelos sistemas para verificar a poluição atmosférica, mesmo assim, a pesquisa da OMS não apresenta números de nenhuma cidade catarinense. Isso porque, em Santa Catarina o Instituto de Meio Ambiente (IMA, antiga Fatma), que deveria fazer o monitoramento, não possui estações de controle e nem dados da poluição atmosférica no Estado.
Uma análise do Laboratório de Controle da Qualidade do Ar da UFSC registrou a quantidade de material particulado (MP) – uma poeira fina criada pela queima de combustível e pelo atrito de pneus no asfalto – em Florianópolis entre 2011 e 2016. A média anual ficou em 24 microgramas por metros cúbicos, acima do limite recomendado pela OMS, que é de 20 microgramas por metro cúbico.
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Poluição do ar: soluções dependem de políticas públicas
Ônibus e caminhões estão entre os principais poluentes
No Brasil, as indústrias eram a principal fonte de poluição até a década de 1980. Mas, nos anos 1990, muitas empresas se mudaram para o interior e os veículos passaram a ser os principais emissores de poluentes em conglomerados urbanos.
Dos combustíveis, o diesel, usado em ônibus e caminhões, é o mais agressivo. Na capital paulista, pesquisa do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) publicada em julho apontou que ônibus e caminhões, apesar de representarem apenas 5% da frota veicular da cidade, são responsáveis por 50% dos poluentes. Uma solução simples, sugerem os autores, é instalar bons filtros no escapamento.
– É um problema de saúde pública difícil de resolver. Se invento um jeito de acabar com o mosquito da malária, ganho um prêmio. Se invento uma maneira de exterminar os carros, serei extraditado para Plutão. Subsidiamos uma mobilidade ultrapassada. Há interesses econômicos, com um lobby organizado no Congresso e questões culturais. Mas não faz sentido: se você computar os custos de mortalidade precoce e atendimentos hospitalares por poluição, verá que, além de vidas, também perdemos dinheiro – avalia o patologista Paulo Saldiva, professor da USP que fez uma pesquisa cujo resultado apontou que permanecer duas horas no trânsito de São Paulo equivale a fumar um cigarro.
A pesquisadora Simone Miraglia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), calculou esse prejuízo econômico para 2014 ao analisar o ar de 29 regiões metropolitanas do país. Descobriu que a grande concentração de material particulado causou a morte prematura de mais de 20 mil pessoas. O prejuízo aos cofres do Ministério da Saúde foi de US$ 1,7 bilhão – 2% do orçamento da pasta no ano.
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Em outro estudo, ao analisar a poluição de São Paulo, ela mostrou que, se a quantidade de poluentes caísse em 25%, a expectativa de vida da população cresceria em cinco meses.
Materiais nocivos para o corpo
A quantidade de poluição no ar depende do número de fontes emissoras (muitos veículos e indústrias, uso de lenha e gás na cozinha), do relevo e do clima da cidade. Lugares com pouco vento e chuva ou que são circundados por morros tendem a ser mais poluídos. No inverno, a poluição piora, porque o frio dificulta que ela se afaste do solo.
Quem vive em regiões com ar muito sujo pode apresentar sintomas fáceis de notar, como garganta e boca secas, falta de ar e tosse – tentativas do corpo de jogar para fora os intrusos que entram pelo sistema respiratório. Outros sinais são silenciosos: maior risco de infarto, obesidade, prejuízo à memória e até mesmo impacto na fertilidade (leia mais ao lado).
Os chamados materiais particulados são os principais responsáveis por atentar contra nossa saúde.
São eles que sujam de cinza as fachadas de edifícios. No organismo, entram pelas narinas até o pulmão e, a partir daí, espalham-se pela corrente sanguínea e o corpo inteiro – chegando, inclusive, ao cérebro.
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Na Europa, uma série de países se movimenta para banir o diesel dos veículos. A Noruega quer fazê-lo até 2025, e a França, até 2040. A ambição, no entanto, contrasta com a dificuldade de implantar estações de recarga para carros elétricos. Sem contar que há uma pressão econômica: milhões de empregos dependem diretamente da indústria automotiva.
A China também busca conter a fumaça: em 2014, o governo determinou que as áreas urbanas reduzissem os níveis de poluição em pelo menos 10%. Para isso, proibiu novas termoelétricas, trocou carvão por gás natural nas indústrias e restringiu o número de carros nas ruas. Até agora, vem dando certo. Em Pequim, após a prefeitura investir US$ 120 bilhões no assunto, os índices caíram 35%. Esforços assim são vistos como uma forma de melhorar a saúde da população.
Doenças respiratórias são causadas e acentuadas pela poluição atmosférica. Problemas cardiovasculares também se relacionam com a qualidade do ar.
– A partir do momento que a pessoa se expõe às partículas, há uma absorção pelo organismo e isso gera um processo inflamatório. Isso costuma afetar nosso sistema cardiovascular e nossas artérias ficam sensíveis. É como se a pessoa estivesse fumando um cigarro, e aquele cigarro machucasse a parede da artéria. Claro que é em uma proporção muito menor, mas a poluição tem o mesmo efeito – explica o médico pneumologista Roger Pirath Rodrigues.
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Os principais vilões
Material particulado
Mistura de partículas líquidas e sólidas que flutuam no ar, criadas na queima de combustíveis, no atrito do pneu no asfalto e até do cigarro. Entre os agentes nocivos estão silício, titânio, alumínio, ferro, níquel, chumbo e óxidos de enxofre e de nitrogênio. O material particulado está ligado à maior incidência de câncer e problemas respiratórios. É o pior poluente, responsável por envelhecer as células. Está diretamente relacionado a doenças e mortes por problemas cardíacos e pulmonares e à maior vulnerabilidade a infecções por doenças respiratórias.
Ozônio (O3)
É resultado da reação química entre a luz solar e agentes poluentes (como o dióxido de nitrogênio) e compostos orgânicos voláteis (como hidrocarbonetos, derivados da queima de combustíveis). Normalmente, aumenta na hora do rush das cidades grandes e atinge o ápice à tarde. Irrita o sistema respiratório (tosse, dor de garganta, dor no peito ao inspirar profundamente), agrava a asma, diminui o fôlego, agride as células dos pulmões e reduz as suas defesas, inflama pulmões e brônquios, o que os deixa mais vulneráveis a infecções.
Dióxido de nitrogênio (NO2)
É expelido na combustão dos motores de carros, barcos e centrais elétricas. Motores a diesel emitem uma quantidade ainda maior. É um grande responsável por asma e problemas respiratórios em crianças.
Dióxido de enxofre (SO2)
Nasce da queima de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, em veículos e termoelétricas. Em contato com o oxigênio, ele se transforma em ácido sulfúrico (H2SO4), que irrita as vias respiratórias.
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Monóxido de carbono (CO)
Ao ar livre, é expelido por automóveis. Em ambientes internos, aparece no uso de aquecedores a óleo, churrasqueiras e fogão a gás e cigarro. Em grandes quantidades, o CO diminui a capacidade do sangue de transportar oxigênio.
Os efeitos da poluição no corpo
Doenças respiratórias
As vias aéreas são o hall de entrada da poluição, portanto os pulmões são os órgãos mais vulneráveis. Os gases e o material particulado que inalamos chegam aos brônquios e, em seguida, caem na corrente sanguínea. A partir daí, espalham-se pelo corpo todo. Quem vive em zonas de grande poluição costuma ter mais crises asmáticas e redução do desempenho pulmonar. Os bebês estão entre os mais vulneráveis, pois é logo após o nascimento que são formados 80% dos alvéolos, onde ocorrem as trocas gasosas – assim, alterações no pulmão podem prejudicar a expectativa de vida. Metade dos casos de pneumonia em crianças é causada pela poluição. Entre os adultos, o câncer de pulmão é outra consequência, porque o material particulado afeta a membrana das células, um gatilho para alterar o DNA de células.
Cérebro
Estudos apontam que o material particulado prejudica as conexões entre os neurônios, o que poderia estar relacionado a problemas de memória, aprendizagem e Parkinson. A poluição aumenta a presença de compostos de ferro no cérebro, um marcador muito comum em quem tem Alzheimer. Também já foi notado que a poluição gera estresse oxidativo (envelhece os neurônios) e que crianças gestadas e crescidas em áreas de grande fluxo de carros têm pior memória e aprendizagem do que aquelas que cresceram em locais menos poluídos.
Coração
O sistema cardiovascular é uma grande vítima: a poluição e, em especial, o monóxido de carbono, impede que os glóbulos vermelhos transportem oxigênio, o alimento das células do corpo – em última instância, isso causa a morte celular. Para coroar, os gases da poluição aumentam a produção de radicais livres, que geram inflamação nos vasos sanguíneos, impedindo a produção de óxido nítrico, um vasodilatador. Os vasos ficam mais estreitos, o que aumenta o risco para pressão alta, entupimento de artérias e aterosclerose. Há estudos verificando que quem vive em regiões poluídas têm pressão mais alta, o que, a longo prazo, pode contribuir para arritmia, derrames e infartos. A poluição também aumenta a capacidade do sangue de coagular. Assim, ele torna-se mais viscoso, o que sobrecarrega o coração e aumenta o risco para entupimento de artérias e a formação de trombos, causa de acidente vascular cerebral (AVC).
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Aumento de peso
A ciência vê indícios de que a poluição desequilibra o sistema endócrino, principal responsável pela produção hormonal. Com a alteração no metabolismo, o apetite e o funcionamento da queima calórica ficam desregulados.
Sistema reprodutor
Paulo Saldiva, da USP, conduziu um estudo cuja conclusão aponta que, em bairros de São Paulo com maior tráfego de carros, é maior o índice de nascimento de meninas, em vez de meninos. Também há evidências de que a qualidade dos espermatozoides é prejudicada e que a ejaculação diminui. Tudo está relacionado ao desequilíbrio na produção de hormônios, em especial na progesterona (feminino) e na testosterona (mais produzido em homens). Ainda há maiores riscos de aborto e de o bebê nascer prematuro e com baixo peso.
* Colaboraram Aramis Merki II e Mayara Vieira
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