Enquanto os delegados aventam a possibilidade de indiciar bombeiros envolvidos no resgate às vítimas da tragédia na boate Kiss, o Ministério Público está inclinado a não aceitar a denúncia, caso ela seja feita. É que a Polícia Civil vê problemas éticos na conduta dos profissionais que teriam deixado voluntários entrar na casa noturna para socorrer vítimas sem os equipamentos de segurança. Já o MP considera que os bombeiros cumpriram seu dever e não teriam conseguido impedir as vítimas de voltarem para a boate na tentativa de salvar seus amigos, seus namorados e mesmo desconhecidos.

Continua depois da publicidade

As condutas éticas dos agentes públicos suscitaram discussões éticas acaloradas entre internautas que se baseiam em uma questão: em um cenário descrito como praça de guerra por testemunhas, como deveriam ter agido os bombeiros que tentavam salvar vidas? Deveriam isolar o local, aceitar ajuda de civis ou incentivar a participação de voluntários no combate ao incêndio?

Com experiência na área de Sociologia da Ética, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Renato de Oliveira afirma que há pouco espaço para controvérsias se confirmadas as declarações de testemunhas de que bombeiros pediram ajuda no resgate:

– Se houve incentivo, não há justificativa. Há uma responsabilidade desses agentes, que são treinados para avaliar os riscos. Do ponto de vista da ética das profissões, não haveria explicação para a postura dos bombeiros se assim agiram.

Para Renato de Oliveira, doutor em Sociologia pela L’École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, a interpretação é outra se os bombeiros não conseguiram deter o ímpeto altruísta dos envolvidos no resgate.

Continua depois da publicidade

– Uma pessoa, por um impulso solidário, pode se expor sem avaliar o risco. É dever dos bombeiros evitar essa exposição. Eles têm de assumir o controle. No entanto, tem de se analisar se os bombeiros tinham as condições de contê-los. Pelo que vemos nas imagens até agora, me parece que não. Neste cenário, acredito que o Estado deveria ser responsabilizado pela falta de estrutura e preparo dos bombeiros – explica Oliveira.

Inquérito Policial Militar também investiga conduta dos bombeiros

A visão do cientista social é a mesma do oficial à frente da investigação militar sobre o episódio. Mesmo sem antecipar detalhes do Inquérito Policial Militar (IPM) que apura falhas dos bombeiros na tragédia, o coronel Flávio Lopes não vê justificativas para “ações que exponham civis a perigo”. Segundo ele, a magnitude da tragédia não atenua falhas nos protocolos de segurança de civis.

– Assim como não se troca um civil por outro em uma situação com refém, não se pode permitir ou empregar voluntários sem equipamentos e treinamentos em um incêndio. Com isso, você só coloca mais uma pessoa em risco – pondera Lopes.

Apoiado no fato de que sua investigação está em curso, o oficial preferiu não antecipar seu juízo sobre possíveis falhas ou condutas inadequadas por parte de colegas de farda. O oficial, no entanto, ressalta que uma eventual responsabilização individual pode variar do abandono de pessoa a risco até tentativa de homicídio.

Continua depois da publicidade

– Já ouvimos mais de 250 pessoas. Destas, ao menos, 150 são policiais militares. O que quero dizer é que estamos apurando com calma a conduta de todos os PMs no episódios, não apenas os bombeiros – diz Lopes.

Em depoimento prestado à Polícia Civil, o comandante do 4º Comando Regional dos Bombeiros, tenente-coronel Moisés Fuchs, disse que a equipe contava com 19 respiradores e que 20 homens trabalharam em um resgate digno de bravura.

‘Os bombeiros estavam em pânico’

Recepcionista da Kiss, Leticia Vasconcellos, 36 anos – mãe de Julia, 6 anos, e Vinicius, 13 – foi uma das primeiras a abandonar a boate quando começou o incêndio. Foi a preocupação com os clientes, muitos deles seus amigos, que a fez voltar para ajudá-los. A primeira vez que ela entrou foi com objetivo de tentar orientar a multidão que corria em direção ao banheiro, acreditando que estavam correndo para a porta de emergência. A maioria morreu lá. Os bombeiros ainda não tinham chegado. Estava no local uma patrulha da Brigada Militar (BM). A segunda vez que Leticia voltou, os bombeiros já estavam trabalhando. Desta vez, ela entrou e não voltou, relata a irmã dela, Vanessa Vasconcellos, que chegou na frente da boate uma hora depois do início do incêndio e viu os resgates. Letícia morreu tentando salvar conhecidos.

– Pessoas como a minha irmã entraram lá e morreram porque os bombeiros estavam em pânico, eu creio que por serem todos muito jovens. Eles também tinham falta de equipamentos – sintetiza Vanessa.

Continua depois da publicidade

‘Não vi eles entrarem na boate’

A estudante Pâmela Vedovotto Machado, 19 anos, foi salva da morte porque um cliente da boate decidiu retornar à Kiss e ajudar no resgate às vítimas. Rafael de Oliveira Dorneles, 31 anos, atravessou a danceteria com ela no colo, deu meia volta e ingressou de novo no turbilhão de fumaça. Caiu e morreu em seguida, sufocado. Eles não se conheciam.

Pâmela estava ao lado do palco e, na fuga, foi prensada contra os bretes metálicos da porta da boate. Asmática, quase não conseguia respirar. Surgiu então Rafael, que reparou na aflição da estudante e a carregou.

A jovem só soube que o rapaz tinha morrido no dia seguinte. Ao acordar no hospital, pediu a listagem de mortos para conferir se constavam amigos nela… e ali estava o nome de Rafael, que ela tinha memorizado. Sobre os bombeiros, Pâmela ficou com péssima imagem. A estudante diz que eles pediam para os próprios clientes da boate verificarem se as vítimas estavam vivas ou mortas.

– Quem entrava na boate eram os garotos, clientes e seguranças. Os jovens voluntários é que davam machadadas nas paredes, tentando tirar vítimas. Por que os bombeiros não fizeram isso? Por que os bombeiros não amarraram uma corrente a um caminhão e puxaram as paredes, para deixar sair a fumaça?

Continua depois da publicidade

Omissão e atos de imprudência estão entre as responsabilizações

Pelo menos três soldados e suboficiais ligados ao Grupo de Incêndio da cidade podem ser indiciados por homicídio – caracterizado na omissão e atos de imprudência durante a operação de salvamento dos frequentadores da danceteria. Só não há certeza do indiciamento porque o Ministério Público discorda da denúncia, já que teriam participado do socorro e seriam vistos como ídolos pela comunidade.

Os cinco delegados que investigam o incêndio estão convencidos de que um grupo de bombeiros (pelo menos três militares) não fizeram tudo o que poderiam para evitar as mortes e, além disso, expuseram voluntários a risco mortal. Os bombeiros teriam convocado populares para entrar na boate, contrariando normas básicas.

Os voluntários ingressaram no local sem equipamento de segurança ou treinamento. Pelo menos cinco pessoas que entraram para salvar os frequentadores da boate morreram, sufocadas pelos gases tóxicos emanados do fogo.

– Falamos com familiares desses mortos e comprovamos que todos morreram após voltarem como voluntários, numa operação estimulada pelos bombeiros. Ocorreu ingresso dessas pessoas num lugar onde só profissionais poderiam entrar, com máscara. Bombeiros fizeram outros assumirem um risco que deveria ser de pessoas treinadas – pondera um dos delegados que participam da investigação.

Continua depois da publicidade

O indiciamento pode ser por homicídio doloso eventual (os bombeiros assumiram o risco de provocar mortes, mesmo sem desejar) ou por homicídio culposo (no caso, por imprudência). Os policiais estão amparados em depoimentos prestados por 28 bombeiros e também por testemunhas-chave que estavam na boate durante o incêndio. Conforme a polícia, vítimas disseram que os bombeiros sofreram com a falta de equipamentos. A carência foi admitida pelo comandante da guarnição de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, em depoimento à Polícia Civil na quinta-feira.

Dois oficiais também podem ser responsabilizados por negligência

O indiciamento por homicídio pode atingir outros dois oficiais dos bombeiros. Está praticamente definido o indiciamento por homicídio doloso de dois oficiais da guarnição de Santa Maria: o tenente-coronel da reserva Daniel da Silva Adriano e o capitão Alex da Rocha Camilo, que continua em atividade. Os dois autorizaram o funcionamento da boate por meio de alvarás.

Os policiais estão convictos de que precauções básicas foram quebradas com essa autorização, como a existência de apenas uma entrada/saída geminadas, além de corredores que impossibilitavam a saída de pessoas em curto espaço de tempo. A boate também funcionou com alvará vencido, sem que os bombeiros tivessem fechado o estabelecimento por isso.

Comandante optou pelo silêncio

A reportagem tentou ouvir o comandante dos bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, na manhã de terça-feira, mas ele disse que as explicações sobre o incêndio na Kiss só podem ser dadas pela assessoria da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP). O assessor de imprensa da SSP, Antônio Cândido, disse que é prematuro comentar um episódio que ainda não tem indiciamentos.

Continua depois da publicidade

Chefes dos bombeiros se defendem em tribuna livre

A tarde de terça-feira na Câmara de Vereadores foi marcada pelo desabafo de duas autoridades do Corpo de Bombeiros de Santa Maria. O major Gerson Pereira, chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros, e o comandante dos bombeiros de Santa Maria, tenente-coronel Moisés Fuchs, utilizaram o espaço da Tribuna Livre – concedido a entidades e instituições da cidade por até 15 minutos – para falar sobre o incêndio da Boate Kiss, que vitimou 241 pessoas. O primeiro a falar foi o tenente-coronel Moisés Fuchs, que disse que a instituição tem sido alvo de severas críticas por alguns segmentos da sociedade:

– Estamos sofrendo duras e severas críticas por fazermos o nosso trabalho. Temos o nosso grau de limitação, mas Santa Maria, hoje, é modelo de prevenção (em incêndio) no Estado.

Depois de Fuchs, que falou por pouco mais de três minutos, o major Gerson Pereira acrescentou que a instituição deu o melhor de si no dia da tragédia:

– Estão nos tratando como leprosos. Estamos há mais de 30 dias ouvindo inverdades calados. Gerenciamos o Comitê Gestor da Crise (que no dia do incêndio funcionou no ginásio do Centro Desportivo Municipal) e, naquele domingo, falei ao Schirmer (prefeito Cezar Schirmer) que não buscássemos culpados e, sim, compartilhássemos responsabilidades. O primeiro ataque partiu da prefeitura. Estamos sofrendo ataques articulados de três segmentos, que os senhores (vereadores) sabem quem são. Se não fizemos mais é porque não tínhamos

Continua depois da publicidade

Clique aqui

Clique aqui