Neste mês, um grupo de feministas adeptas do anarquismo provocou polêmica ao se apresentar no programa Radar, da TVE, combinando a batida do funk com letras repletas de palavrões, críticas à Igreja Católica e referências sexuais.

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A performance transformou a banda Putinhas Aborteiras em alvo de ofensas, elogios e curiosidade em todo o país por meio de comentários nas redes sociais e reportagens. As ações de suas integrantes, porém, vão muito além das composições musicais.

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Elas costumavam se apresentar em festivais alternativos e fazer shows sem muita expressão. Hoje, sua página no Facebook contabiliza mais de 5,6 mil curtidas, e apenas um dos vídeos em que aparecem cantando na TVE soma mais de meio milhão de visualizações. Como resultado dessa exposição, passaram a sofrer ameaças anônimas de morte, de estupro e acusações de serem “imorais”. Também receberam apoio de quem entende que chocar parte do público ajuda a colocar em discussão o machismo na sociedade e temas ainda considerados tabus, como a liberação sexual feminina e a defesa radical do aborto.

Por trás de composições como “Ei, Papa, levanta o teu vestido / Quem sabe aí embaixo não está o Amarildo”, estão jovens universitárias de classe média ou recém-formadas oriundas de cursos da área de ciências humanas de universidades públicas – embora façam questão de afirmar, em entrevistas, que nem todas seguem esse perfil socioeconômico. Entre as componentes, estão C.M., formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), D.A., graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e estudante da mesma área na UFRGS, e G.M., proveniente do curso de História da UFRGS, por exemplo. Os nomes foram omitidos a pedido delas (que preferiram não conceder entrevista a ZH) em razão das ameaças sofridas desde a aparição na TV.

O chamado anarcofunk – estilo difundido no Rio de Janeiro que combina funk com letras de inspiração anarquista – exibido durante a madrugada no canal público gaúcho é apenas uma das formas de expressão das militantes que se definem como uma espécie de “coletivo aberto” – ou seja, sem limitação de participantes (“pra ser Putinha, não precisa carteirinha”, costumam repetir). Ações políticas como protestos de rua e ocupações de espaços públicos para defender temas variados, que não se limitam à luta feminista, também fazem parte do seu repertório de mobilizações.

Representantes do grupo participaram da tomada da Câmara de Vereadores da Capital em julho do ano passado, por exemplo. A invasão promovida por militantes ligados ao Bloco de Luta pelo Transporte Público exigia passe livre e transparência nas contas das empresas de ônibus. Permaneceram durante oito dias acampados no plenário e, ao final, provocaram mais controvérsia ao divulgar fotos de homens e mulheres nus dentro da Câmara. Componentes da banda estavam lá.

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O grupo ganhou força durante a temporada na Câmara, quando algumas participantes da ocupação sofreram assédio sexual de homens. Outros homens se ofereceram para protegê-las, mas um grupo de mulheres com participação do coletivo feminista se articulou por conta própria, sem interferência masculina.

– O que rolou na Câmara foi muito massa porque rolou uma organização das minas para se proteger contra as atitudes machistas – afirmou uma das ativistas em uma entrevista concedida a uma rádio transmitida via internet, a Putzgrila, depois da apresentação na TVE.

Desse episódio, surgiu ainda inspiração para uma letra de música: “Eu tava bem de boa na ocupação/ Até que no meu peito senti foi uma mão/ Um toque de tarado inconsequente/ Da boca do fulano não sobrou nem só um dente”.

Integrantes da banda também participam da organização da Marcha das Vadias em Porto Alegre, evento que condena a violência contra a mulher, e se envolveram nos protestos de junho do ano passado na Capital. Negam vinculações partidárias já que, como anarquistas, defendem uma sociedade sem figuras de autoridade política ou religiosa.

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O nome que designa as militantes surgiu durante uma das mobilizações das quais costumam participar. Uma das integrantes providenciava crachás de identificação para as colegas com nomes irônicos como “vândala baderneira” e “putinha aborteira” – esse último acabou agradando e passou a identificar o coletivo. O funk foi o estilo escolhido por unir simplicidade ao apelo popular.

– O funk foi uma das formas que a gente achou para poder dialogar com a galera de forma simples, usando a arte para colocar a política em um papo reto, politizar – comentou outra integrante na entrevista concedida à rádio Putzgrila.

Para feminista, estratégia adotada pelo grupo é válida

Para uma das principais referências do feminismo gaúcho, a jornalista e coordenadora do coletivo Feminino Plural Télia Negrão, a controvérsia provocada pela banda é positiva para colocar em discussão temas ligados às mulheres – ainda que com uma estratégia mais radical e sujeita a chocar algumas pessoas.

– A priori, temos (as feministas) como característica respeitar essa diversidade do movimento, como as anarcofeministas. Se elas conseguem fazer a sociedade refletir e se posicionar, isso contribui para a reflexão e a produção do contraditório – avalia.

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Télia lembra, ainda, que a estratégia de radicalizar não é nova (“eu já fiz isso de tirar a roupa, mostrar os seios, nos anos 70”) e tem como eixo a tese mais antiga do feminismo contemporâneo: o direito ao corpo e o direito sexual.

– Elas têm uma estratégia midiática de afirmação da autonomia feminina. Não é nem melhor, nem pior do que outras correntes do feminismo. Isso corresponde ao momento social que nós vivemos, de uma sociedade mais fragmentada – conclui Télia.