Diante de um urso negro atraído por um apito estridente no Canadá, a caçadora está ofegante. Apesar do nervosismo, segura com firmeza o arco e dispara uma única flecha certeira, que derruba o animal. Ainda trêmula, ela vibra por ter abatido mais um “big boy”.

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A cena – difícil de suportar até para os que não se emocionam com filmes ao estilo Marley & Eu – é uma das inúmeras disponíveis no canal da americana Melissa Bachman no site de compartilhamento de vídeos YouTube. São muitos episódios sobre caçadas dentro da lei a ursos na América do Norte e também a crocodilos gigantes, antílopes, javalis e zebras na terra do Rei Leão.

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Apresentadora do programa Winchester Deadly Passion, Melissa tornou-se celebridade numa indústria que movimenta um lucrativo negócio em dezenas de países e que despertou uma polêmica global ao publicar em seu Facebook uma foto com um leão morto em uma fazenda privada na província de Limpopo, na África do Sul. Assim como Melissa, inúmeros caçadores exibem cadáveres de grandes animais como troféus, inclusive ao lado de crianças, nas redes sociais e sites especializados.

Mesmo movimentando só na África do Sul cerca de US$ 700 milhões ao ano – US$ 22 milhões apenas com o abate esportivo de leões – em aproximadamente 12 mil fazendas de caça (as game farms) e inclusive em parques nacionais, o estilo ruidoso de Melissa provocou revolta no país.

Matar um leão custa até US$ 40 mil na África do Sul

O cientista político Elan Burman, que vive na Cidade do Cabo e se apresenta como um “ativista acidental”, conseguiu mais de 434 mil assinaturas em cerca de uma semana para uma petição online endereçada ao governo sul-africano. No texto, publicado no site de petições change.org, Burman pede que Melissa seja considerada persona non grata na África do Sul pela atitude que “contraria a cultura de conservação da qual o país se orgulha”.

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Grupos contra Melissa multiplicaram-se no Facebook, assim como manifestações de apoio à apresentadora. Uma página de apoio no Facebook a tarde de ontem havia recebido 42,8 mil curtidas. Reproduzem argumentos como o da Associação de Predadores Sul-Africanos, que em nota distribuída à imprensa, alega que o clamor contra aventuras como a de Melissa vem de pessoas com a “mentalidade criada por Walt Disney”.

– Cada leão caçado em uma fazenda salva outro na vida selvagem – argumenta o chefe executivo da Associação Sul-africana de Caçadores e de Preservação de Caça, Cris Niehaus, proprietário de uma fazenda de caça, em entrevista por telefone a Zero Hora.

Niehaus argumenta que o Quênia aboliu a caça esportiva em 1978 e tem agora 15% a 18% dos animais que tinha há 40 anos. Na África do Sul, onde fazendas de caça são permitidas, o número de animais nesses criadouros aumentou de 500 mil em 1980 para 20 milhões atualmente. Niehaus diz que não caça leões – atividade que mais cresceu nesse setor no último ano por conta de americanos e europeus dispostos a pagar US$ 20 mil a US$ 40 mil por cada cabeça com juba -, mas faz uma única ressalva à forma como Melissa apresenta seus troféus:

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– Foi irresponsabilidade dela publicar as imagens nas redes sociais se não estava preparada para lidar com as críticas – pondera.

Com a enxurrada de ataques, Melissa deletou seu perfil no Twitter, mas seus vídeos ganharam milhares de acessos no YouTube.

– Não há motivo para caçar animais puramente por diversão em qualquer lugar do mundo – revolta-se Anja Heister, diretora da organização Wild and Free, com sede na Califórnia, nos Estados Unidos, e que desenvolve uma campanha contra os “caçadores de troféus”, com mais de 100 mil apoiadores.

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Para Anja, as fazendas dizem que criam animais para, um dia, se for preciso, soltá-los na natureza, como forma de manter atividades lucrativas.

– A abordagem de preservação mais correta e sustentável seria a de preservação dos animais selvagens e de manutenção dos parques para pessoas que querem fotografar os animais vivos – acrescenta Anja, por telefone a ZH.

Enquanto a África do Sul sequer cogita banir a caça esportiva, Zâmbia e a vizinha Botswana começaram a adotar um calendário para, a partir de 2014, eliminar os safáris ao estilo de Melissa de seus websites.

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Que fim levou Sunshine?*

Os chamados “big five”, os cinco animais que estampam as cédulas de dinheiro e qualquer portfólio da África do Sul, estão cotados assim em um site entre as milhares de fazendas de caça no país de Nelson Mandela: búfalo, US$ 14,4 mil; elefante, US$ 35 mil; leão, US$ 22 mil; leoa, US$ 9 mil; leopardo, US$ 15 mil. O quinto é o rinoceronte, que felizmente não figura em algumas das listas e cuja caça esportiva tem caído porque o governo está sendo pressionado a conter o extermínio desse animal cobiçado pelos seus chifres.

Essas fazendas com instalações pitorescas, porém luxuosas, proliferaram nos últimos 30 anos. Os leões são criados em viveiros por seis ou sete anos até serem reintroduzidos em áreas grandes o suficiente para simular o habitat natural. Três meses a um ano depois de soltos, viram um objeto de ostentação.

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FOTO: Arquivo pessoal

Há, porém, um lado menos selvagem dessa atividade: estabelecimentos que valorizam mais a contemplação do que a caça. Fiquei alojada em um local assim há 19 anos, na mesma província onde Melissa Bachman posou com um leão morto, cabeça apoiada em um monte de terra. A imagem do bicho inerte choca quem já acampou ouvindo urros de leões ou já interagiu com filhotes como Sunshine (foto acima). Mas não tenho ilusões. Talvez Sunshine tenha recebido o mesmo destino do leão de Melissa.

Os safáris de caça estão tão arraigados no país que os críticos de Melissa só reagiram ao ver do que vivem exposto como um troféu no Facebook.

*A editora Vivian Eichler viveu na África do Sul em 1994 e 1995.

FOTO: Arquivo pessoal