Entre o branco e o preto existem diferentes matizes. Mas o pensamento polarizado trabalha de forma dualista e exclusiva. Se não é o branco, só pode ser o preto! Entre os sentidos próprio e figurado do conceito, o brasileiro encontrou diversas expressões para dar conta do fenômeno que saltou dos gabinetes políticos para a internet e contaminou a sociedade como um todo. A nação divide-se entre os “do bem” e os “do mal”, os “limpos” e os “sujos”, os “nossos” e os “outros”, os “patriotas” e os “comunistas”, “os vermelhos” e “os da camiseta da Nike”, “os coxinhas” e “os mortadelas”, os “de dentro” e os “de fora”, os “crentes” e os “pecadores”, os “do lixo” e os “do luxo”. Por fim, os “da vacina” e os “contra a vacina”.

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Do período Imperial aos tempos atuais. Historicamente sempre convivemos com divergências e revoltas, como a Cabanagem, Revolução Farroupilha, Balaiada. Ainda, Canudos e Contestado, e a luta armada contra a Ditadura Militar (1964-1985). A polarização atual também é fruto de um marco político, as manifestações de junho de 2013, explica Geraldo Tadeu Monteiro, cientista político, doutor em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Sociologia Política pela Universidade de Paris (Panthéon-Sorbonne).

Para ele, as jornadas de 2013 cresceram de maneira inesperada e apropriadas por grupos que militavam na campanha do candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) a presidente da República. Nos anos seguintes, o movimento concentrou-se em torno do impeachment de Dilma Rousseff (PT) e, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro, marcada por um contexto de um antipetismo derivado da Operação Lava-Jato e da exploração do tema corrupção.

– Esta polarização invadiu a sociedade como um todo, e isso inclui as famílias, torna-se presente nos encontros e em datas comemorativas. Assim também como nos ambientes de trabalho e horas de lazer. Mesmo com dois anos de mandato, Bolsonaro não consegue romper com a polarização. Aliás, o próprio presidente se encarrega disso, ao criar, por exemplo, a dicotomia entre a questão sanitária e a economia – diz Monteiro, que também é coordenador do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia e diretor presidente do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social.

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Para ele, em vez de abrandar a polarização, Bolsonaro a faz crescer na pandemia ao estimular tratamento precoce sem comprovação médica e desrespeitando orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

– A pandemia se tornou mais um ingrediente da polarização – observa.

Wagner Romão, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, reforça o uso massivo das mídias sociais como fenômeno significativo para o acirramento. As mídias sociais possuem um formato que aproxima os semelhantes, criando “bolhas” e praticamente impedindo um debate respeitoso, além de ser terreno fértil para notícias falsas, mentiras, opiniões sem o mínimo embasamento científico e piadas que inferiorizam os “inimigos” políticos.

Isso acaba saindo do mundo digital e vira assunto entre famílias e amigos, o que acirra os ânimos entre os que acreditam cegamente no que viram e os que tentam convencê-los de que se trata de enganação.

– Penso que vamos conviver com este clima político por muito tempo. As mídias sociais precisariam ser reformadas, mas atualmente possuem um poderio econômico e político extremo e não há, pelo menos por enquanto, força econômica, social e política que possa se contrapor a este poderio – diz o professor.

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Romão tem esperança:

– Por outro lado, a política é sempre o terreno da invenção. O autoritarismo e o confronto sem regras geram um estado de tensão permanente e a sociedade vai se cansar disso. Líderes democráticos surgirão e devem ser apoiados. Precisamos defender solidariedade e inclusão como valores fundamentais da vida em sociedade – sugere.

“A polarização de ideias não corrói a democracia”, diz especialista

Muita gente embarca numa confusão semântica ou narrativa oportunista da polarização.

– A polarização de ideias políticas não significa defender regimes autoritários, antidemocráticos, violentos, negacionistas ou que não tenha menor apreço à liberdade de expressão, imprensa ou instituições republicanas. Isso é crime – alerta o professor Nelson Marques, doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

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Para Marques, a polarização de ideias não corrói a democracia. Exige maturidade para saber lidar com diferentes projetos. O perigo destruidor, segundo ele, está nos regimes autoritários, os quais podem recrudescer em qualquer espectro político, e são constitucionalmente proibidos. Ele defende que criminalizar a polarização de ideias – progressistas e conservadoras – é uma sutil estratégia de eliminação de outros projetos políticos para o país, em detrimento de um projeto único, direcionado ao centro, em que outros programas para gravitar em sua órbita têm que se adequar às diretrizes:

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– O esforço retórico para a aniquilação da polarização está apoiado em um ou em múltiplos desejos: obscurantismo político, ingenuidade, manutenção de privilégios, ou um projeto de poder unilateral.

De acordo com Marques, atualmente na rede municipal de Piraí e na Universidade IESVAP-Afya, do Vale do Paraíba, a polarização no Brasil, aos trancos e barrancos, trouxe um número imenso de jovens para a política, instigou parte da população a se informar (mesmo que algumas vezes através de fake news) e fortaleceu movimentos sociais e causas identitárias, as quais tiveram maior repercussão nas mídias ajudando ao debate público. Assim como tiveram outras correntes, no polo conservador, que foram contra essas pautas ou parte delas.

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– Inevitavelmente, a polarização de ideias políticas (não as formas odiosas, violentas que observarmos e são associadas à polarização) é um caminho importante a ser percorrido, para que possamos reelaborar um projeto nacional amplamente discutido e manter de forma permanente a revisão do mesmo – complementa.

“Brigou, separou, rompeu a relação: a polarização foi só um empurrãozinho pra isso”, defende professor

Houve quem brigou ou rompesse relações familiares devido à polarização. O professor Nelson Marques, doutor em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, defende que esses tipos de caso refletem anos da ideia de que “política não se discute”. Na opinião dele, o Estado democrático ainda é recente e os ânimos se afloraram também pela pouca instrução política.

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– Existe uma euforia e o sentimento de que todos (as) têm voz com as redes sociais. Contudo, devemos evidenciar um fato: as pessoas não aprenderam ou aprendem na educação básica a serem críticas, a discutir política. Ao contrário, muitos professores (as) estão sendo coagidos física e psicologicamente pelo poder público e responsáveis das instituições a não realizarem discussões de ordem política na escola – argumenta o professor.

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Marques vai além. Na avaliação dele, os casos extremos foram apenas potencializados pela polarização:

– Se as brigas e as separações perduraram, mesmo depois das eleições, a polarização de ideias foi só um empurrãozinho para uma vontade interna de se afastar. Toda separação ou afastamento nesse nível é multifatorial, ligadas a questões maiores de ordem pessoal. Talvez a polarização tenha sido um pretexto, mas se trata de um incômodo necessário, assim como outros incômodos que devemos executar diariamente – conclui.

Formado em Jornalismo e em Ciência Política, o analista de mídias sociais Luiz Vendramin Andreassa considera difícil o combate da polarização na nossa sociedade. Mas sugere como primeiro passo um esforço consciente para, a cada momento, lembrarmos de como pode ser possível conviver com quem pensa e gosta de um político ou partido dos quais nós não gastamos.

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– Quando entendemos os comportamentos polarizantes e por que eles existem, podemos trabalhar para identificá-los e evitá-los. Com isso, percebemos quantas vezes desprezamos opiniões de pessoas que pensam diferentemente de nós, ou julgamos o caráter delas por conta de suas ideias. Mas é um passo desafiante, pois exige uma dose de humildade intelectual e boa vontade para lidar com pessoas que podem não estar dispostas ao diálogo.

“É um trabalho pra vida toda”

De acordo com Andreassa, há estudos e testes comprovando que o comportamento bélico não funciona para convencer as pessoas. Se o indivíduo chegar para o diálogo apenas com o intuito de provar que está certa e ganhar a discussão, dificilmente dará certo.

– Todos nós temos barreiras psicológicas que se armam diante do confronto, diante de quem julgamos ser de um grupo “inimigo” – diz.

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Perguntado se vê saída, ainda que ache uma tarefa difícil, o cientista político não titubeia:

– É um trabalho de uma vida toda, mas vale a pena, pois se está quebrando com uma prática que prejudica muito o país e a sociedade.

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