Se você digitar a palavra “polarização” na barra de pesquisa do Google, é bem provável que o site já sugira a palavra “política” como complemento. Claro, é impossível não pensar na separação extrema entre grupos políticos ao considerar o conceito de polarização – e outros tipos de radicalização, em diversos aspectos da sociedade.

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Potencializada pelas redes sociais, a polarização se alastrou para diversos outros campos da vida moderna, e parece ter dividido todo mundo em “times”, independente de estarmos ou não falando de futebol.

– Os grandes grupos urbanos causaram um certo apagamento do indivíduo. Há 50 ou 60 anos, mesmo morando em cidades, as pessoas costumavam ter um “nome”, ser reconhecidas em suas comunidades. Com esse apagamento, as pessoas tendem a se organizar no que, há alguns anos, se chamava de “tribos”. Antes isso ficava restrito ao campo do futebol. Religiões se respeitavam à distância. A internet possibilitou a organização de outros grupos além desses, e nós começamos a nos agregar com outras pessoas que têm as mesmas opiniões que nós. E até mesmo coisas que parecem mais simplórias, como o gosto por determinado cantor ou música, passaram a ser marcas de identificação desses grupos – explica o filósofo e escritor Mário Sergio Cortella.

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O jornalista Pedro Só, que trabalha com reportagem e crítica musical e já foi redator-chefe de veículos especializados como Billboard, Bizz e Reverb, comenta que, na música, a divisão radical em tribos é quase uma tradição. De acordo com Pedro, o sectarismo musical já foi inclusive mais forte no Brasil.

– Tinha muito aquela coisa do roqueiro sectário, que odiava pagode. Nos veículos em que trabalhei sempre tentei abrir um pouco: levar samba para os veículos pop, apresentar mais ritmos brasileiros; e essa tentativa às vezes batia de frente com o público. No Rio de Janeiro, a rejeição ao sertanejo já foi fortíssima. Acho que hoje as pessoas estão mais misturadas. Tem uma cultura de playlist. Mas, por outro lado, os ódios e os preconceitos, quando existem, ficam mais escancarados, por causa das redes sociais – pondera.

A ideia da oposição como algo que causa mudanças positivas, que faz crescer e evoluir não é exclusiva do universo das artes. A própria busca por coisas melhores costuma ser motivada por divergências e conflitos.

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– Nós temos uma relação negativa com a vida: isso quer dizer que preciso de um outro que me negue, porque nesse processo do outro que me nega eu me reorganizo, me reconstruo e me apresento para o mundo – explica a psicóloga Catarina Gewehr, doutora em Psicologia Social.

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– Qual é a graça de dividir o time do Corinthians em dois e botar essas duas metades para se enfrentar? Que emoção o corintiano vai sentir com essa vitória? Agora, se o Corinthians ganha do Palmeiras, é outra história. Olha como o Palmeiras é importante para alguém ser corintiano! – complementa a psicóloga.

Catarina reforça que o esquecido hoje em dia é justamente isso: que precisamos desse outro diferente.

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– O diferente sempre nos lança para um trabalho de autorregulação, e nós não queremos passar por esse trabalho. A ideia de hoje em dia é de que, quanto menor o trabalho, melhor.

Cortella diz que o conflito positivo se torna perigoso quando vira um confronto agressivo, e que a agressividade é facilitada pelo contato via redes sociais, que permitem algum tipo de distanciamento e até anonimato.

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– Presencialmente, a relação é mais empática: há uma cautela maior. Quando há uma abstração da pessoa que você está enfrentando, a agressividade aflora mais facilmente –resume Cortella.

Cultura do cancelamento: consequência da radicalização e agressividade

É fácil observar, nas redes sociais, uma consequência dessa radicalização e agressividade: a chamada cultura do cancelamento.

– Essa prática vem de uma cultura de sinalização de virtude e de um moralismo muito típico de pessoas inexperientes ou de militâncias radicais. Digo pessoas inexperientes porque isso costuma vir de pessoas muito jovens. Acho que, quando a pessoa já viveu um pouquinho mais, ela sabe que muitas vezes pessoas incríveis têm atitudes erradas nas vidas pessoais. Se isso acontece uma ou duas vezes, não quer dizer necessariamente que essa pessoa seja um mau caráter. Você vai vivendo e vendo que uma hora ou outra você mesmo pode cometer um erro desses, que pessoas que você ama e respeita já cometeram erros assim e mais tarde assumiram o erro, aprenderam, e a vida foi em frente – considera o jornalista Pedro Só.

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O jornalista lembra que na era pré-redes sociais, a maioria da sociedade não tinha um posicionamento a respeito da maioria das questões políticas.

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– Ninguém sabia dizer o nome de três ministros, e hoje nós acompanhamos a rotina do Supremo como se fosse um reality show (risos).

Ele argumenta que também não é possível, como muitas vezes é feito, ignorar o contexto que cerca determinada pessoa, situação ou declaração:

– Digamos que o cara foi criado numa cidade de 2 mil habitantes no interior do Tocantins: é óbvio que ele vai ter posicionamentos que podem chocar a classe média urbana universitária de São Paulo. Se a gente for avaliar artistas de décadas anteriores a respeito dos posicionamentos quanto a machismo, racismo, homofobia, não vai sobrar nada – exemplifica.

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Cortella aponta também que a racionalidade argumentativa costuma se perder quando o debate é muito orientado pela polarização: a argumentação em si é substituída pela “retórica furiosa”, quando se entende que é mais fácil vencer o “adversário” pela intimidação. A psicóloga Catarina Gewehr ressalta:

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– Há uma ideia de que a opinião é livre, de que tenho direito à minha opinião, mas digo isso de forma a ser tão contundente que o outro deixe de ter condição de expressar a própria opinião.

– A possibilidade de resposta intempestiva, imediata, também empurra as discussões nessa direção – completa Cortella.

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Exercício para evitar discussões em meio à emoção

Catarina cita um exemplo parecido, imaginando um cenário em que dois colegas de trabalho brigam durante o expediente: os dois vão para casa, descansam, refletem, quem sabe tomam uma cerveja no happy hour, relaxam, e no dia seguinte conseguem resolver a questão de cabeça fria. Ela sugere um exercício: ao ler algo que incomoda na internet, o usuário, antes de responder diretamente, deve escrever a resposta à mão, em uma folha de papel, e voltar a ler o conteúdo, tanto o post ou mensagem original quanto a resposta, dois dias depois.

– Geralmente, depois de algumas horas, a gente já acha que a discussão não vale mais a pena. Essa experiência muda a perspectiva sobre o fato porque transfere a resposta para um momento em que você está menos mergulhado na emoção. Precisamos fazer o esforço de resgatar o sentimento de vida em comunidade, da presença do outro. Nos últimos anos nós nos desobrigamos de uma vida comunitária e mergulhamos muito em nós mesmos – reflete Catarina.

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– Há que se entender antes de tudo que sou uma forma única de ser humano, mas não sou a única forma de ser humano. O fato de alguém não pensar como eu não significa que a pessoa esteja errada, mas também não significa necessariamente que eu esteja errado. É preciso colocar à mesa os argumentos e verificar qual nível de veracidade cada um deles contém. A reação intempestiva marcada apenas por uma crença exclusiva naquilo que eu já pensava é uma forma muito específica de tolice. Isso reduz meu repertório de soluções e alternativas. Como dizia o Charlie Chan (detetive fictício criado por Earl Derr Biggers em 1923): A mente humana é como um paraquedas: funciona melhor aberta – conclui Cortella.