Michel Temer está poetando:
“Ainda sinto / com dor / aquele odor”.
Seria maldade, no entanto, reduzir a literatura do presidente em exercício a momentos truculentos como esse. O poeta de Anônima Intimidade, livro que reúne 164 páginas de versos guardanapados em voos Brasília-São Paulo e foi publicado em 2012, também tem seus bons momentos: “Quando parei / para pensar / todos os pensamentos / já haviam acontecido”, ou “Ando à procura / de mim. / Só encontro outros / que, em mim, / ocuparam o meu lugar.”
Continua depois da publicidade
Assim como Temer, Sarney e outros presidentes arriscaram literatura
A questão à Luigi Pirandello de enxergarmos uma múltipla identidade em nós mesmos, aliás, é um dos conflitos de Temer: “Havia distância / entre o exterior / e o meu interior. / O mundo não era eu, / eu não era o mundo. / Dois estranhos / Contra a minha vontade / convivendo”, “Serei eu no espelho / ou serei aquele / que a minha mente exibe?” e assim por diante.
Continua depois da publicidade
Seja como for, a identidade responsável pelos poemas do livro é a de um lamuriento, um melancólico, um septuagenário consternado com a fluidez do tempo, alguém “tresloucado pela dor” se perguntando se os seus sentimentos, “a angústia / a dor / algumas poucas alegrias / resumem-se a trinta, quarenta escritos? / Serei tão pobre / interiormente?”.
Cineastas brasileiros em Cannes criticam o “golpe” e fim do MinC
Edson Machado: a questão não é apenas orçamentária, é conceitual
De fato, não estamos falando do interior de Whitman, Eliot, Ginsberg, Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar ou Manoel de Barros. É mais o de um confesso aspirante a escritor na adolescência que, tendo seguido o caminho mais seguro de se tornar jurista, político e autor de livros técnicos, um dia começou a preencher guardanapos com literatura para reavivar um eu menos burocrata. Basicamente, a mesma história de vida maquinal gris e sem sentido que o escritor norte-americano Sloan Wilson consagrou no romance O Homem no Terno de Flanela Cinza, publicado em 1955, filmado um ano depois e reverberado em tantas obras até hoje. “Vivi o eu aparente. Apenas. Mas eu sou outro. / Este, que está nestas páginas”, escreve Temer, que também lastima: “Nunca ousei / O quanto poderia ousar / Agora é tarde!”. Um verso que talvez seja revisto em futura edição, se a ousadia referida não for literária, mas política.
Ao comentar de passagem os escritos do então ex-presidente, Otávio Frias Filho, publisher do jornal Folha de S.Paulo, preferiu logo pontapear o pau da barraca. Definiu Temer como alguém que, pertencendo à profissão jurídica, encarna uma “caricatura de seus maneirismos, inclusive os de poetastro” (mau poeta).
Temer realmente é capaz de versos muito ruins. “Seio. Aconchego. Proteção. / Professora. Primeira colega. Um olhar. Amor. Sonhos. E sonhos. Futuro. Espera”, ele vai resumindo no poema Idade, talvez jurando alcançar uma obra-prima de vertigem temporal.
Continua depois da publicidade
O pior talvez esteja nas páginas 109 e 110, quando Michel Temer, nos seus momentos nefelibatas no avião rumo a Brasília, faz uma convocação epífana constrangedora: “Vinde a mim / Platão, Aristóteles / Santo Tomás, Voltaire / (…) Vocês, nacionais / Machado, Alencar (…) / Vocês, mulheres, Rachel, Lígia / Hilda, Cecília / Zélia / (…) Vocês, poetas, Castro Alves, Casimiro, Varela, Drummond, Bandeira, Vinicius / (…) Vinde a mim, novamente. / Preciso escrever!” (detalhe para o “novamente”).
Seja como for, grande parte de Anônima Intimidade é apenas convencional. Manjados poemas sobre falta de inspiração ou a alegria como responsável por escritos ruins, experimentações verbais pouco inventivas, versos com algum futuro à espera de autocrítica ou editor. E há os momentos melhores, que além dos já citados incluem versos como os do amante envelhecido sincero, talvez se dirigindo a Marcela, 43 anos mais nova: “Não te iluda. / Não procuro a ti. / Procuro o passado / Que em ti / Se localiza.”
Para os peemedebistas, que têm também que arcar com a obra irregular de Sarney, resta o revide de que os presidentes petistas não escreveram literatura nenhuma. Lula nos deve um livro com suas melhores metáforas ludopédicas, e Dilma, com seus melhores versos desconstrucionistas. A presidente afastada ainda não parece ter sido picada pela mosquita da inspiração. Talvez tenha poemas estocados. Até agora, em todo caso, parecer preferir deixá-los ao vento.
***
Leia outros poemas do presidente em exercício.
Temer, o Inspirado
Percebido por si
Despercebido por outros.
Quando outros o perceberam
Despercebeu-se de si.
Temer, o Banal
O momento passa.
O fato muda.
O instante
Fica distante
Michel Temer falou, Michel Temer avisou
Deixo que o tempo passe
E que os papéis
Percam atualidade
Superados, rasgo-os.
Também assim
Nas relações.
Deixo que o tempo as consuma.
Exauridas, elimino-as
O livro: Anônima Intimidade, de Michel Temer. Ed. Topbooks, 164 páginas,
R$ 34, 2012
Leia outras notícia de entretenimento