Os olhos de dona Wanda brilharam. Por um instante, as lágrimas pararam de rolar no seu rosto. Comento que no dia seguinte seu irmão Hamilton completa 70 anos.
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– É verdade! – diz, com um sorriso. – Ele faz aniversário dia 18 de fevereiro, tadinho. Deus abençoe ele.
Dos seus 67 anos, Wanda Rosa viveu em quartos alugados, sozinha, por pelo menos dois antes de ser transferida para o Lar de Zulma, Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) em São José, na Região Metropolitana de Florianópolis, onde mora há cinco meses. A mãe morreu. Com a única filha, ela não tem contato. Wanda é viúva de dois maridos e tem mais uma irmã, apenas por parte de pai, com quem não fala. Hamilton é o único irmão por parte de pai e mãe, mas a proximidade entre os dois havia se perdido há cerca de cinco anos. No enterro da mãe, em 2014, falaram-se rapidamente e, desde então, não tinham mais se encontrado. Wanda já não tinha esperanças de reencontrar o irmão, que morava nas ruas de Florianópolis. Até chegar o Carnaval de 2016.
Apenas 47 municípios de SC têm instituições de longa permanência para idosos
Para comemorar a data, várias instituições que abrigam idosos na Grande Florianópolis promoveram uma festa na Serte, instituição que abriga pessoas com mais de 60 anos no bairro Cachoeira do Bom Jesus, em Florianópolis. Sentada, observando a movimentação, Wanda identificou um rosto familiar. Parecia Hamilton, mas ela não acreditava que pudesse ser.
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– Estava ali sentada, comendo, e ele chamou a minha atenção. Pensei que não poderia ser. Fazia dois anos que eu não o via, e dois anos de velhice são muita coisa! – conta ela.
Quando terminou de comer, foi atrás do homem:
– Como é o teu nome? – perguntou.
– Hamilton Rosa – ele respondeu.
– Tu é meu irmão!
Assim que ela disparou a revelação, ele ficou em silêncio. Mas Wanda conta que, em seguida, Hamilton a reconheceu.
– Somos só nós dois agora – diz ela.
Hamilton mora na Serte há dois meses. Foi convidado a sair das ruas e viver em uma casa de apoio da prefeitura, antes de ser encaminhado à instituição. Também não tem contato com a família há cerca de cinco anos. Antes de se aposentar, trabalhou como garçom em Santos, no litoral de São Paulo. No anos 1980, quando uma epidemia de Aids se espalhou pela região, decidiu voltar a Florianópolis, onde nasceu.
– Eu morava sozinho, até que os traficantes tocaram fogo na minha casa. Eles queriam fumar pedra lá, e eu não deixei. Aí fui morar na rua, onde fiquei por cinco meses. Foi a época mais difícil da vida. Até que o serviço de abordagem me levou para a casa de apoio – conta Hamilton.
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A trajetória dos irmãos Wanda e Hamilton é o espelho da realidade das pessoas com mais de 60 anos que vivem em Santa Catarina, um dos Estados com a maior proporção de idosos sobre a população geral do país. Segundo o censo realizado em 2010 pelo IBGE, 10,5% dos catarinenses já chegaram à chamada terceira idade – e esse número tende a aumentar nos próximos anos.
Dos mais de 600 mil idosos em SC, 4 mil moram em Instituições de Longa Permanência para Idosos(ILPI) e cerca de 1,3 mil aguardam por uma vaga – que só abre quando alguém morre. Sem ter para onde ir, muitos estão sujeitos a maus tratos e negligência – ou acabam morando nas ruas, por falta de familiares.
“Não podemos deixar na mão do Estado”, diz geriatra sobre cuidado a idosos
Entre janeiro e dezembro de 2014, o programa Disque 100, do governo federal, recebeu 862 denúncias de abusos contra idosos em Santa Catarina – 61% delas foram contra mulheres e 25% contra os homens. Nos três últimos anos, o Estado tem liderado o ranking de relatos relacionados a ocorrências envolvendo idosos na região Sul. No ranking nacional, em 2015, foi o 12o Estado em ligações para o serviço.
Para o médico geriatra e especialista em envelhecimento André Junqueira Xavier, o número alto de denúncias nem sempre está relacionado a um aumento nas agressões, mas demonstra uma maior disposição da sociedade em denunciar qualquer ocorrência.
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– Por um lado, pode realmente estar aumentando (o número de agressões), mas também pode estar aumentando o número de denúncias. As pessoas estão confiando mais no Estado, no poder público e fazendo denúncias – avalia.
Na Capital, com cerca de 460 mil habitantes, 13% da população têm mais de 60 anos. A secretaria de Assistência Social da prefeitura registrou, em 2014, 339 violações contra idosos. Em 2015, esse número subiu para 394. Katia Abraham, diretora de Proteção Social Especial, observa que os casos mais comuns são negligência e abandono, seguidos de violência psicológica.
Idosos recolhidos nas ruas e em situação de negligência são levados para casas de acolhimento da prefeitura e, de lá, transferidos para as ILPIs. Na Serte, maior instituição de Florianópolis, moram 52 idosos – 90% têm problemas psiquiátricos, 30% são casos de abandono. Apenas 21 idosos recebem visitas – em geral, esporádicas, chegando a, no máximo, duas vezes por ano. A assistente social, Rosarita Bolusfield, contabiliza que, só na Serte, 184 idosos aguardam por uma vaga – uma demanda três vezes maior do que a capacidade da casa.
– Só abre vaga quando morre alguém – lamenta Rosarita.